A propósito do Orçamento de Estado para 2014
Com a sua habitual assertividade, Ricardo Pais Mamede caracterizou assim em três penadas o Orçamento de Estado para 2014 (1):
- Contraproducente
- Aldrabão
- Cobarde
Contraproducente, pois que, repetindo a receita austeritária aplicada nos anos anteriores, não alcançará (mais uma vez) as metas da redução do deficit, da dívida e o crescimento económico, não criando as condições para o pretendido "regresso aos mercados".
Aldrabão, pois que assenta em projecções reconhecidamente irrealistas e desencontradas. Por exemplo, medidas recessivas não são compatíveis com crescimento económico. Duplamente aldrabão, digo eu, pois cobre com a bandeira da sustentabilidade, a desregulamentação e a privatização dos serviços públicos, tendo na mira a destruição do estado social: os três pontos da designada "agenda neoliberal".
Cobarde, pois que, com o apoio abusivo de instituições mercantis internacionais, pressiona o Tribunal Constitucional responsabilizando-o pelo previsível falhanço da politica austeritária que o Orçamento prossegue, qual Titanic... do mesmo passo que abre assim caminho para a revisão da constituição, indispensável para a concretização da tal "agenda neoliberal" seguida pelos titeres da União Europeia.
A resposta democrática a esta ofensiva do governo PSD-CDS subordinada à financeirização e à internacionalização da economia a mando dos "mercados", poderá passar pela realização de um referendo ao Euro, mas não poderá precindir de eleições com vista à formação de um novo governo respaldado por inequívoco mandato popular para renegociar a Dívida com os credores. A dureza e as previsíveis consequências desta negociação, em que não se poderá descartar a saída do euro no avisado entender de José Maria Castro Caldas, exigem um mandato popular que, para ser inequívoco tem que ser conferido por uma massa crítica de cidadãos perfeitamente conscientes da situação em que nos encontramos e dos riscos que corremos.
E esse é que pode ser o problema para quem vê na esmorecente sucessão das manifestações de rua, sejam orgânicas ou inorgânicas, no vaivem das "superfícies comerciais" que competem com o centro das cidades, na persistente fixação no futebol, nas telenovelas e "reality shows" em que se vai esbatendo a fronteira entre a realidade e a ficção, a progressão de uma espécie de anomia, entrecortada aqui e ali por um "sobressalto cívico" passageiro.
Estaremos nós hoje a afundar-nos numa anomia galopante?
Hoje, concentrado na leitura de uma pequena obra de Léon Walras publicada pela editora Inquérito, fui surpreendido pela curiosidade da empregada da pastelaria, acerca de um livro aparentemente tão antigo.
Respondi-lhe eu: Sabe que nesta altura, já lá vão setenta anos, havia quem lançasse belíssimas colecções de divulgação que percorriam a política e a história, a economia e a sociologia, a filosofia e a religião, o direito, a ciência e a literatura. Cadernos verdadeiramente populares. Este exemplar custava 3 escudos, menos de dois cêntimos na moeda de hoje. Para o tempo era mesmo acessível.
Ripostou imediatamente a jovem empregada: Pois, nessa altura, mas agora não, parece que não estão interessados nisso.
Respostas destas podem não manifestar uma deprimente anomia, mas sim uma apatia porventura expectante. Apatia, como reação racional a um sistema que já não representa, não ouve nem serve a grande maioria das pessoas. As pessoas só esperam mais do mesmo do "sistema". Os partidos do governo perdem nas sondagens, sem que essa perda seja capitalizada pelos partidos da oposição que não apresentam uma "alternativa genuína" capaz de as mobilizar. É para esta "alternativa genuína" que apela o comediante Russell Brand, recentemente entrevistado por Jeremy Paxman na BBC, Reino Unido. Lá como cá!
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(!) No Encontro realizado pelo CDA (Congresso as Alternativas) na quinta-feira passada, para debater o Orçamento de Estado para 2014.
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