Sobre o tempo
Uma pequena memória e depois uma bela estória.
Veio-me hoje à consciência a visita que fiz ao Palácio do Monteiro-Mor, ao Lumiar. Vai para quarenta anos. Passou tanto tempo e como me recordo do que mais me impressionou! Tal foi a intensidade da experiência.
Saí do palácio para o jardim e o meu olhar logo de afundou na encosta íngreme a poente, domesticada em gigantescos degraus, por gigantes que neles plantaram gigantescas árvores, hoje seculares.
Na verdade plantadas não por gigantes mas por jardineiros, como então se chamavam os botânicos como Domenico Vandelli, J. Rosenfelder, Frederich Welwitch, Jacob Weiss e José Baptista Possidónio.
Já lá vão dois séculos! Teria sido provavelmente Domenico Vandelli que plantou a Auraucária heterophylla, importada por Jacome Ratton, importante industrial e negociante da praça de Lisboa. Ela seria quando lá fui, não só a mais antiga, mas também a mais alta auracária conhecida em Portugal: cerca de 48 metros. Hoje tem menos 5 metros, amputada a flecha em 1977 graças à acção pronta do Engenheiro Silvicultor Filipe Sousa Lara para a salvar do fungo que a estava a secar, provavelmente da espécie Cryptospora ou Servazziella longispora (Servazzi).
Agora a bela estória contada por Gregory Bateson ao arquitecto Stewart Brand que a relata no seu "How Buildings Learn":
O New College, Oxford, é de fundação recente, daí o nome. Provavelmente foi fundado nos fins do século xvi. Tem, como os outros colégios, um grande refeitório com grandes vigas de carvalho no tecto, a toda a largura da sala. Estas vigas deveriam ter uma secção de quarenta e cinco centímetros de lado e seis metros de comprimento.
Há cinco ou seis anos, foi o que me contaram, um activo entomologista subiu á cobertura do refeitório sondou as vigas com a ponta de uma navalha e constatou que estavam cheias de caruncho. Isto foi comunicado ao Conselho do Colégio que reuniu com alguma preocupação. Onde iriam eles agora encontrar vigas daquele calibre?
Um dos Junior Fellows arriscou sugerir que talvez houvesse algum carvalho nos terrenos do colégio. Estes colégios dispõem de terrenos dispersos pelo país. Chamaram então o Silvicultor do Colégio que certamente não andava por perto há alguns anos e perguntaram-lhe pelos carvalhos.
E ele coçando a testa disse, “Bem, meus senhores, estava a ver quando me perguntariam por eles."
Depois de mais investigações descobriu-se que quando o Colegio foi fundado, foi plantada uma mata de carvalhos para substituição das vigas do refeitório quando fossem atacadas pelo bicho da madeira, porque as vigas de carvalho acabam sempre por ser atacadas pelo bicho. A palavra foi passando de um Silvicultor ao seguinte durante quatrocentos anos. Não se cortam os carvalhos. São para o refeitório do Colégio.
Que bela história. "That’s the way to run a culture".
A Auraucária do Parque do Monteiro-Mor e as vigas do Refeitório de Oxford assinalam uma prática que está nos antípodas da actual.
Os arquitectos paisagistas, herdeiros dos botânicos que desenhavam jardins, instados pelos seus clientes seleccionam árvores de crescimento rápido para jardins instantâneos. Tendo que cuidar da manutenção, recorrem frequentemente à substituição. Nestes "tempos modernos", substituem-se as árvores desamorosamente tal como se substituem as peças avariadas de uma máquina... Quando não é a máquina por uma nova. Sai mais barato!
Hoje, em que a sociedade moderna de que fugiu Gauguin se desintegra no nanosegundo das bolsas , é admirável que Vandelli e o seu cliente, o Marquês de Angeja, se dispuzessem a plantar árvores que, guardando as devidas distâncias, só seriam disfrutadas em plenitude pelos seus netos e bisnetos... por gente comum como eu, duzentos anos depois. É claro que, se essa fosse a prática corrente, como talvez fosse, acabavam todos por usufruir de uma realidade muito mais complexa e gratificante que, por exemplo, incluiria árvores de folha caduca de crescimento lento e toda a sua ecologia. Nessa percepção dos tempos, dos ritmos da natureza, diziam os velhos alentejanos: "vinhas minhas, olivais dos meus pais, montados dos meus antepassados".
Dir-se-ia que os arquitectos, esses outros que não lidam com seres vivos que nascem, crescem e morrem, mas com minerais, incluindo a madeira quanto possível mineralizada, não sentiriam essa dimensão do tempo, da acção do tempo, senão na inconveniente necessidade de manutenção da construção. Não é afinal sobre esse pragmática forma de pensar a longo prazo que nos fala o conto de Bateson que parece demasiado belo para ser verdadeiro? A meu ver não. A sua beleza diz-nos mais, vai mais longe, pois nos faz pensar numa comunidade que se perpetua no tempo, nas suas obras, na atenção com elas, na lembrança dos que partiram e nos cuidados com os que virão depois, num sentido de pertença que une o refeitório do colégio ás matas de carvalhos, nas palavras de ordem que vão passando de geração em geração. Temos ainda hoje esse sentido do tempo inscrito na sensível selecção e conjugação dos materiais em arquitectos como Carlo Scarpa. Poucos é certo, como se vê nas obras "modernas" que envelhecem tão mal!
Vem desta nossa apressada dimensão temporal associada a uma desintegração social, esta nossa incapacidade de pensar a longo prazo, irmã da falta de solidariedade com os mais próximos, fará com as próximas gerações, a qual tem a terrível consequência de nos mergulhar numa "dissonâcia cognitiva", divididos entre a procura de sucesso no crescimento económico e a imperativa necessidade de fazer qualquer coisa pelo planeta amigável que nos viu nascer.
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