Reflexões Planetárias

Thursday, November 07, 2013

Gerir um país é como gerir uma casa?

“Imaginem o que é uma família ter que passar um ano inteiro a trabalhar sem comer, sem utilizar eletricidade, sem utilizar transportes, só para pagar a dívida dessa família. Foi este o ponto a que chegámos em Portugal. É um ponto absolutamente insustentável”, afirmou Crato, em Ovar, durante uma sessão de esclarecimento sobre o próximo orçamento.



Se nas famílias portuguesas imperasse a norma austeritária de "expiar" num ano o pagamento da casa ou do carro, o sr. Prof. Nuno Crato não teria nascido porque já estariamos todos mortos há muito tempo... inclusivé os mais ricos que não tivessem fugido entretanto para os seus paraísos fiscais, pois não teriam por cá ninguém a trabalhar para eles e a pagar as dívidas resultantes das suas práticas especulativas que nos levaram ao "estado" em que estamos.
Quererá Nuno Crato, com o curto prazo da amortização, fazer sentir ao comum dos mortais a desmesura do endividamento do Estado, comprando-o com o das famílias? Não parece boa ideia, pois que o endividamento em cerca de 120% do PIB que a troika considera razoável para o Estado nos próximos anos, é bastante inferior ao limite critico de 300% encarado pela banca para o endividamento das famílias, como observa Ricardo Sequeiros Coelho, baseado nos resultados de um inquérito publicado em 2012 pelo Banco de Portugal (1).

Mas será sequer admissível assemelhar a gestão das contas de um país à gestão das contas de uma casa de família?
Sequeiros Coelho diz-nos que tal comparação não consta dos manuais de economia, mesmo dos mais ortodoxos.
A investigação histórico-antropológica feita por Karl Polanyi, comprova a diferença entre "householding" familiar e "reciprocidade" e "redistribuição" que regeram a economia das sociedades civilizadas mais complexas... até à sociedade moderna em que é o mercado que manda na sociedade.
Não se pode comparar realidades completamente diferentes.
Não se pode comparar uma pequena comunidade famíliar com uma sociedade maior e mais complexa, mas "esse é um dos argumentos mais comuns do discurso austeritário" que assenta "no paralelismo entre a gestão do orçamento de Estado e do orçamento doméstico", como salienta Sequeiros Coelho.

Porque se insiste então nesta analogia dentro do discurso austeritário dominante?
Michel Lowry, entrevistado por Gabriel Fabri, na revista Forum a propósito do trabalho de Walter Benjamin, perfilha uma explicação muito plausível nos seguintes termos:
"Muito do que o Benjamin diz corresponde de maneira surpreendente ao funcionamento atual do capitalismo. Realmente há algo de um culto religioso na maneira como os representantes do sistema capitalista, seus economistas e os seus meios de comunicação se referem à propriedade privada, ao mercado, à bolsa… Mas talvez a coisa mais surpreendente e atual é quando Benjamin fala da ambivalência, na língua alemã, do conceito de Schuld, que é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Ele acha que essa coincidência é diabólica e que isso está no coração da religião capitalista: a dívida é uma culpa, quem está endividado é culpado. O capitalista está sempre em dívida com o seu capital, o pobre está sempre em dívida porque não tem dinheiro, então todos somos endividados, todos somos culpados. Hoje em dia nós vemos na Europa um discurso teológico de que todos os países que estão em crise estão por culpa deles, porque não trabalham, são preguiçosos, esbanjaram dinheiro. Todo um discurso moralista querendo culpabilizar esses países, quando sabemos que a dívida resulta da lógica do próprio sistema capitalista, de sua irracionalidade profunda."

À medida que se foi passando do meio académico para dentro do mundo dos negócios e da política - e Nuno Crato está hoje bem dentro, na linha da frente do actual governo - cresceu nele uma arrogância assaz ignara que transparece nas afirmações bombásticas como esta da analogia em apreço, bem como nas medidas simplistas da entrega do cheque-ensino aos alunos em nome da liberdade de escolher e da entrega da missão do "exército da educação" à iniciativa privada de grupos de soldados-professores(2) ao serviço da mercantilização da sociedade.
Ao que chegámos! Isto é anarco-capitalismo no seu pior!
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(1) Contribuição de Sequeiros Coelho para o trabalho "Não acredite em tudo o que pensa", coordenado por José Soeiro, Miguel Cardina e Nuno Serra, publicado pela editora "Tinta da China" em 2013
(2) Expressiva metáfora usada por um participante da assistência, no "Prós-e-contras" do passado dia 4 de Novembro.

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