Reflexões Planetárias

Sunday, April 11, 2010

Leiria - uma cidade em transformação

Leio no crescimento difuso da cidade de Leiria dois processos cruzados que se intensificaram a partir dos anos oitenta.

Um processo de baixo para cima, algo anárquico, em que a industriosa população local se desdobra em multiplas intervenções que se adensam nas vilas e aldeias dos arredores, bem como ao longo de antigas vias de circulação local e de estradas nacionais parasitando-as no que Álvaro Domingues designa, com graça e propriedade, por "rua da estrada". Paredes meias com vinhas, pomares e hortas familiares, retalhos de cultura, matos e pinhais remanescentes, emergem fabriquetas, barracões, oficinas, "stands", vendas e lojas de comes e bebes, em heteróclitas instalações e anexos, parques de sucata, de usados e tutti quanti... E nesta espécie de anarquia há ainda as casas! Last but not the least! As casas novas, pequenos e grandes caprichos, materialização de sonhos (pesadelos para outros), paredes meias, por vezes no sentido literal, com "prédios de andares", fruto da iniciativa de algum vizinho mais empreendedor e "bem relacionado" que, numa insanável contradição, se agigantam sobre elas roubando-lhes a privacidade, o sol e as vistas.
Um processo de cima para baixo vindo de fora, em que a massificação da sociedade de mercado, apoiada na tecnologia, se materializa em grandes infraestruturas e equipamentos de âmbito regional ou supraregional que esquartejam a estrutura ecológica e o tecido rural. O padrão fino da vida local é imperceptível à distância a que são tomadas as decisões económicas e tecnológicas nos gabinetes da administração pública e privada. Abstrações desenhadas nos gabinetes de projecto comandam a distância a retroescavadora que se lança sobre o terreno, descarnando montes, aterrando vales, levando à sua frente caminhos, fontes e poços, terras de cultura, sebes e bosquetes protectores, florescentes e odoríferos, cheios de vida. Num ápice que não permite o arrependimento, desfigura-se em definitivo a fisionomia particular de um sítio, longamente afeiçoada pelo tempo e pelas gerações. É a "morte por abstração" dos bombardeamentos a distância, uma comparação brutal do arquitecto Malcolm Wells para abanar a consciência dos colegas com maiores responsabilidades públicas e grandes encomendas privadas.
Um processo híbrido que tem os seus promotores e mete autarquias e técnicos, envolve uma parte da industriosa população que transfere competências, a tempo parcial ou inteiro, para a construção civil incorporando-se numa espécie de máquina de desruralização que, através de loteamentos na lógica do negócio imobiliário, converteu os campos em sub-urbanizações sem urbanidade porque não se estruturam num espaço público favorável à convivência urbana. Sub-urbanizações e terrenos espectantes, entremeados com monoculturas agro-florestais sem ruralidade.
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Perdeu-se o equilíbrio cidade-campo que os mais velhos conheceram na sua infância. O centro histórico não encontra um lugar seguro neste processo dual de conurbação autodependente que faz de Leiria uma das capitais do país mais difíceis de recuperar para um mix de transportes que contemple a resposta à crise energético-ambiental e proporcione condições para uma melhor qualidade de vida urbana. Esse equilíbrio ancestral que se perdeu para sempre, transparece nesta imagem da cidade dormente do passado que eu ainda conheci na minha infância: O diálogo de poderes entre o Castelo, a Torre e a Sé - em que se intromete o "edificio do Governo Civil" - domina o casario encaixado na paisagem envolvente! Imagem também de uma sociedade estática e fechada em que a vida era dura para muita gente... mas, como contam com saudade os mais velhos, não isenta de alegrias, no jogo da convivência que se insinuava na labuta diária, ou explodia nas festas religiosas que se casavam com a cadência das estações!
Abandonado este equilíbrio estático ancestral, está por encontar um novo equilíbrio. Por enquanto reina um estado que os optimistas militantes poderão designar por destruição criativa e os críticos por criação destrutiva.
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Figuras: Moínhos da Barosa, Leiria (fonte: Google); "Rotunda aérea" junto ao "Leiria Shopping" (fotografia do autor); Vale Sepal, Leiria (fonte: Google); Vista de Leiria antiga (fotografia da colecção do autor)

1 Comments:

At 12:54 AM, Anonymous Ricardo Charters d'Azevedo said...

Como cidadão temos todos direito à Arquitetura entendida como um bem de interesse público. Pela incidência na vida dos cidadãos, a melhoria do ambiente construído constitui uma orientação dominante da Ordem dos Arquitectos (OA), explanado na moção de Orientação Global aprovada no 12ª Congresso dos Arquitetos, em 2010.
Nesta moção, já com 2 anos, retiro igualmente a ideia de conservação e valorização do Património Arquitetónico e a conclusão de que os arquitetos, e a sua Ordem, pretendem assumir-se como parceiro fundamental de uma Política Pública de Arquitetura, e na sua concretização, o que leva o exercício da profissão de arquiteto a uma maior exigência e responsabilidade.
Respinguei no site da OA (www.arquitectos.pt) os textos, que refiro abaixo, e que regulam a profissão de arquiteto, e os princípios deontológicos que são aplicáveis “a todos os arquitetos na atividade profissional qualquer que seja o seu modo de exercício, nomeadamente por conta própria, como empresário ou gestor, como assalariado ou avençado, como funcionário público em situação de dependência ou de responsabilidade hierárquica”.
Porquê esta introdução? Simplesmente para chamar a atenção para que muitos se insurgem publicamente contra o estado da nossa Leiria e da sua evolução arquitectónica. Mas há responsáveis!!! Então a CMLeiria não recrutou técnicos, nomeadamente arquitectos e que lá estão desde há muitos anos. Assim a OA tem responsabilidades. Explico-me.
Então não foi um arquiteto que projetou e localizou, no terreno que lhe foi atribuído, o equipamento que hoje criticamos?
E não foram arquitectos da CMLeiria que “no exercício da sua profissão, mantendo sempre e em quaisquer circunstâncias, a maior independência e isenção, nunca prosseguindo objetivos que comprometam a ética profissional” que propuseram o licenciamento? Então se todo o processo esteve em mãos de arquitectos porquê não os responsabilizar? Será que estes não respeitaram as orientações e os princípios defendidos pela sua Ordem ? Consequentemente a OA deveria investigar…
Não terei razão?

(este texto foi baseado num artigo publicado por mim no Jornal de leiria de 24 de Maio na pag 2)

 

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