"Coup-de pioche"
"O coup-de-pioche consiste em espetar uma estaca no solo para simbolizar o acto de furar a cabeça da serpente da terra, para a fixar ao solo. Este gesto geomântico é um dos sinais implícitos no simbolismo de S. Jorge matando o dragão." (Rupert Sheldrake; L´âme de la nature)
O "coup-de-pioche", um simbólico golpe de picareta que dá inicio à escavação do terreno para a implantação da casa que a celebra num tempo mítico, in illo tempore, perdeu sentido com o desenraizamento da nossa sociedade tecnológica.
Rompida a teia de ligações tangíveis e intangíveis que entreteciamos com os lugares, dessacralizámos a terra e rimo-nos do "animismo" que animava os "coups de pioche".
Mas... será para rir?
A sucinta citação de Sheldrake deixa muito por explicar sobre o ritual da construção tradicional. As respostas encontramo-las em Mircea Eliade que nos remete para os seus Comentarii la legenda Mesterului Manole em "O Mito do Eterno Retorno". Como sublinha Eliade em "O Sagrado e o Profano", "a Serpente representa o Caos, o amorfo, o não-manifestado. Dacapitá-la equivale a um acto cosmogónico, à passagem do virtual e do amorfo ao formal."
Mas, o que pretendo aqui salientar é o sentido de pertença a um todo mais vasto que, nas sociedades tradicionais, é relembrado, ou mesmo assumidamente consumado (*), em rituais próprios e lugares sagrados, bem como na sacralização dos passos mais importantes da vida profana, tais como a implantação da casa, banalizada na sociedade moderna.
Ouçamos Edward Hyams: "Quando os homens trabalham a matéria usam duas espécies de utensílios: utensílos físicos de madeira, pedra, metal; e utensílios psicológicos... Os utensílios psicológicos podem ser divididos em duas subclasses, intelectuais e espirituais; os utensílios intelectuais dizem respeito ao método e agrupam-se em ciências; os utensílios espirituais dizem respeito ás nossas relações com o resto do universo e agrupam-se em mitologias e religiões"...
"E o que cabe ao utensílio espiritual? Ele é o membro desta trindade instrumental que permite ao homem controlar e testar as suas acções pelo feeling que tem sobre as consequências das mudanças que operam no meio ambiente."
Menosprezamos com arrogância, este instrumento espiritual na nossa sociedade secular intelectualizada, sobrevalorizando a ciência mecanicista que nos tem permitido realizar coisas fantásticas. Mas, na linha de raciocínio de Hyams, precisamos de revalorizar este instrumento espiritual para sustarmos a crise ecológica, na medida em que é fruto da nossa arrogância. Mas não será também fruto do pendor analítico do método científico que assume o todo como sendo igual á soma das partes?
Hyams surpreende-nos com uma porta de saída que interessa ás artes, ao admitir que a força deste instrumento reside na humildade que infunde e num sentido de unidade e de ordem que a arte pode cultivar, naqueles periodos em que atinge a integridade e a capacidade emocional que se perdem quando nos desligamos desses sentimentos espirituais".
Mas, qual foi o caminho que seguimos na arquitectura moderna?
Resposta Sheldrake, em consonância com Eliade:" A tendência moderna da arquitectura rompe deliberadamente com as tradições do passado e aborda a construção com o espírito da ciência mecanicista. Le Corbusier não declarava que as casas eram "máquinas de habitar?"
Isso mesmo... Ressalvando um pormenor sobre o outro lado de Corbu: o da Capela de Notre-Dame-du-Haut em Ronchamp... que para o Corbu era uma "máquina de emocionar", num recorrente vai-vem entre a razão e a emoção, em que traz ao de cima o seu pendor maquinista!
Mas não será Ronchamp uma estaca cravada no dragão da técnica?
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(*) Segundo Mircea Eliade (em O Sagrado e o Profano), nas sociedades tradicionais, " sejam quais forem as dimensões do espaço que lhe é familiar e no qual ele se sente situado - o seu país, a sua cidade, a sua aldeia, a sua casa - o homem religioso experimenta a necessidade de existir sempre num mundo total e organizado, num Cosmos."
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