A armadilha da dívida
Recuando na história recente do capitalismo moderno, até ás veias abertas na América latina, voltei a ler Eduardo Galeano que me lembrava falar do papel do ouro do Brasil.
Esgotado o filão do ouro, deixei-me levar por Galeano, um cativante contador de histórias, e detive-me em Manaus.
Em meados do século XIX, a capital mundial do comércio da borracha era Manaus, situada no coração da Amazónia.
"Os magnates da borracha edificaram aí as suas mansões de arquitectura extravagante, cheias de madeiras preciosas do Oriente, majolica de Portugal, colunas de mármore de Carrara e móveis de marcenaria francesa. Os novos ricos da selva mandavam vir os mais caros alimentos do Rio de Janeiro, os melhores costureiros da Europa talhavam os seus trajes e vestidos; mandavam os seus filhos estudar em colegios ingleses. O teatro Amazonas, monumento barroco de bastante mau gosto, é o simbolo maior da vertigem daquelas fortunas do princípio do século: o tenor Caruso cantou para os habitantes de Manaus na noite da inauguração, por uma quantia fabulosa depois de subir o rio através da selva"
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Muitos poderão ficar encantados com o "teatro" discordando de Galeano, mas como desligar o verso do reverso? Como não acompanhar Galeano na sua indignação, face ao cenário da devastação que se passava nos "bastidores" de uma sociedade visceralmente tão desigual?
Tanta ostentação de tão poucos assentava na exploração mercantil da árvore da borracha e da força de trabalho de tantos seringueiros, condenados a um labor insano numa vida sem futuro.
"Alguns autores estimam que não menos do que meio milhão de nordestinos sucumbiram ás epidemias, ao paludismo, à tuberculose e ao beriberi, no auge do periodo da borracha."
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"Não só a febre, também os esperava, na selva, um regime de trabalho bastante parecido com a escravatura. O trabalho pagava-se em espécie - carne seca, farinha de mandioca, rapadura e aguardente - até que o seringueiro saldasse as suas contas, milagre que raramente acontecia."
A propósito, conheci em Moçambique, em pleno século XX, uma situação idêntica, em que os indígenas eram obrigados a cultivar algodão que trocavam nas "cantinas" por meios de subsistência, sendo enganados no peso, na quantidade e nos preços.
Voltando à história contada por Eduardo Galeano: "Havia um acordo entre os empresários para não dar trabalho aos trabalhadores com dívidas pendentes e, os guardas rurais, colocados nas margens dos rios, atiravam sobre os fugitivos. Somavam-se dívidas sobre dívidas. À dívida original pelo transporte do trabalhador vindo do nordeste, somava-se a dívida pelo instrumentos de trabalho" (...) "e como o trabalhador comia e sobretudo bebia, porque nos seringais não faltava aguardente, quanto maior era a antiguidade do trabalhador maior era a dívida acumulada"
Igual propósito tinha o "imposto de palhota" que, no final do século XIX, o governo português instituiu nas suas colónias de África: uma dívida imposta que amarrava os indígenas a um trabalho assalariado para a pagar.
E hoje, cá estão os portugueses amarrados à armadilha da conversão de uma dívida privada numa dívida pública impagável que os impede de fazer a sua vida. Outrora, os povos colonizados eram obrigados a trabalhar para companhias majestáticas pela força, expoliando-os das suas terras. Hoje, subjugados pelo serviço da dívida os estados são presa dos mercados de capitais e os povos, perdida a sua ligação á terra, são presa do mercado de trabalho, incapazes de satisfazer as necessidades artificialmente desmultiplicadas na sociedade de consumo compulsivo em que vivemos.
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