Reflexões Planetárias

Friday, March 23, 2012

Tempestade em Lisboa

As nossas relações com o clima são hoje, cada vez mais mediadas pelos conhecimentos que nos proporciona o avanço da ciência e pelos meios que nos disponibiliza o progresso tecnológico. Beneficiamos, é certo, de previsões mais fiáveis e de um tentador conforto mecânico, mas não podemos evitar dependências tecnológicas e energéticas e as implicações ambientais que vêm por acréscimo.
A par destas implicações de ordem prática existe uma outra, de ordem sensível que tem sido ignorada que é o empobrecimento do trato directo com o mundo à nossa volta.
É nos espíritos mais sensíveis, naturalmente, que vamos encontrar o exercício e o testemunho da complexidade das nossas relações com o clima, como é o caso de Proust que já abordei em reflexão anterior.
Entre muitos outros, vem agora ao caso Mircea Eliade que nalgumas linhas das suas memórias nos fala do frio e do calor, da chuva e da neve, dos fenómenos extremos e das variações do tempo e de como tudo isso é vivido e sentido por quem não perdeu as suas ligações com o mundo à sua volta.
Retrato vivo da nossa região de Lisboa, para mais!

Mircea Eliade demorou-se em Portugal cerca de quatro anos durante a IIª Grande Guerra. Viveu em Lisboa, no nº 147 da Rua Elias Garcia, mas também, logo nos primeiros tempos, numa pequena "villa" que alugou em Cascais, atraído pelo pitoresco da acolhedora vila piscatória de então.
Vamos então ás memórias em que fala do tempo:
13 de janeiro de 1945: "Acordo de manhã com a tempestade a bater-me nas janelas. Flocos grandes de neve, tal como ainda não tinha apanhado em Portugal. (É verdade que desde o Natal se abateu um frio "polar", como escrevem os jornais e que, a semana passada, morreram cinco pessoas com o gelo).
O mar está cinzento e agitado. E o olhar acompanha as gaivotas que não percebem o que se passa, voando desorientadas sobre as ondas nevadas... Quando desco ao hall, a tempestade intensifica-se.
Acendemos a lareira mais cedo do que é costume e tapamos as portas e as janelas com papel. Fecho a porta do escritório, onde está sempre uma diferença de alguns graus. As ondas chegam agora até a parede do terraço. Nas rochas em frente, eclodem a intervalos, geisers extranhos, como que nascidos da pedra. A salamandra de ferro fica incandescente, mas continua fresco. Pensamos no que teriamos feito na Elias Garcia 147. E penso em muitas coisas que aconteceram, que nunca mais acontecerão"
26 janeiro, tês dias depois: "É incrivel como pode mudar o tempo nesta costa do Atlântico. Depois da tempestade de ontem, continuada com fúria durante boa parte da noite, acorda-me uma manhã quente e solarenga. Um autêntico dia de Verão. Partimos para o Guincho..."
13 de Junho: Ha três dias, calor terrivel (40° a sombra). Tomo banhos sem parar, na praia em frente de casa. Os estores estao fechados nas janelas, de madrugada e até ao por do Sol. Canícula."
Mircea Eliade, Diario Português (1941-45), Guerra & Paz Ed. 2008.

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