Fabrica & ratiocinatio(*)
Os arquitectos portugueses vivem hoje uma situação de fronteira particularmente delicada, mas também estimulante.
O seu esforço de afirmação implica desde logo a definição do seu campo de actuação, na divisão do trabalho entre todos os que concebem e constroiem o ambiente em que vivemos... o que hoje não é fácil, visto que a arquitectura não é uma actividade especializada saída da sociedade industrial.
Não ficaremos, no entanto, à espera de uma definição para praticarmos depois. Nem se trata necessáriamente de escolher uma especialidade. Por exemplo a de “cenógrafos”, cuja arquitectura teria a impressionante concorrência dos “mass-média” e das novas tecnologias.
É um desafio que, a meu ver, se aceitará no diálogo entre a teoria e a prática, com os outros especialistas, com os clientes, cidadãos e instituições sociais que conosco convivem na nossa actividade profissional.
Neste sentido, uma contribuição específica será a de encontrar formas de pôr o progresso tecnico-científico ao serviço do homem (do “homenzinho” de A. Aalto), usando mais os conhecimentos do que os equipamentos. Não se trata de apenas respeitarmos normas e regulamentos técnicos que condicionam a criatividade, para se satisfazerem níveis de conforto, níveis de segurança ou limites de consumo, ou de esconder, integrar ou exibir a panóplia técnica. Trata-se de criar um ambiente edificado em que dê gosto viver, com os recursos disponíveis, combinando meios passivos com sistemas activos.
Para isso, o arquitecto tem que se entender com a técnica. Ora parece-me que o principal obstáculo a esse entendimento reside, do lado dos arquitectos, no formalismo visualista predominante, além do mais impermeável e mesmo avesso ao convívio com o método científico.
“Chi e buono pittore e buon prospettico, dunque sara buon architetto", afirmava Andrea Pozzo em seiscentos.
O Prof. Augusto Brandão, meu professor de Teoria da Arquitectura, então muito influente no curso e autor projecto da escola de arquitectura na Ajuda, dizia que os espaços e formas da arquitectura “só se distinguem das formas escultóricas por conterem interioridades” ligadas a sentídos simbólicos e abstratos (Jornal dos Arquitectos, 1987). Esta definição que creio muito vulgarizada, isola a arquitectura da tectónica e da vida.
Da tectónica. Na Idade Média os mestres arquitectos e os seus companheiros, conciliavam no empirismo dos estaleiros, o espiritual e o material, o impulso ascencional para Deus e o impulso lateral do vento no cavername invertido, cada vez mais esbelto das catedrais, escorado por arcos botantes.
O corte faz-se na Renascença. Serve de exemplo o modo como os arquitectos formalistas pegaram na cúpula, tal como é comentado por Frank Loyd Wright (Mon Autobiographie, Librairie Plon, Paris 1955). Significativamente, é um escultor enorme, Miguel Ângelo que, aos setenta e dois anos, concebe a cúpula de S. Pedro, no centro de um polo de poder espiritual e temporal do seu tempo. Essa grande mitra de pedra não remata o jogo de volumes segundo as linhas de força como em Santa Sofia,mas empertiga-se sobre colunas-andas.
É uma falsa cúpula cujas fendas teriam tirado muitas horas de sono ao grande escultor, até que foi cintada por fortes correntes de ferro, grossas como braços, na eminência da derrocada.
Uma abstração, um símbolo de poder que domina a Cidade Eterna a sessenta metros de altura... acorrentado!
Esta forma forçada, com as suas correntes escondidas na alvenaria assimiladas como “aneis de tração” fez caminho, irradiou pela Europa. Sir Christopher Wren dizia que as correntes eram dispensáveis mas... deixou-as ficar, à cautela na St. Paul´s Cathedral! E passou para o Novo Mundo, como símbolo da democracia. A arte do ferreiro alastrou-se mesmo a toda a cúpula, em cúpulas integralmente feitas de ferro, com na Catedral de Notre Dame de La Brousse, oferecida ao seu povo “sur ses deniers” por Houphouët-Boigny, Presidente da República da Costa do Marfim!
Enfim! Passemos agora ao corte com a vida.
Não é verdade que nas “interioridades” da arquitectura vivem homens e mulheres, pessoas que não têm só olhos, nem vivem para o Belo como quem vive para Deus?
Entre as escadas de Escher e, por exemplo,as escadinhas de São Cristóvão na Mouraria de Lisboa, existe uma grande diferença: é que as de Escher foram desenhadas para percorrer com o olhar e as de São Cristóvão foram feitas para subir e descer não só, nem sobretudo com os olhos, mas com as pernas, os músculos, com todo o corpo.
E que experimentamos quando nos refugiamos na vetusta e maciça igreja de uma ruidosa e poluída rua da capital, numa cálida e vibrante tarde de verão? Sentimos a penúmbra ferida pelo clarão do zimbório; o silêncio marcado pelos sons isolados desdobrados nas lentas reflexões das superfícies pétreas; o fresco, oh sim, o fresco “armazenado” naquela enorme massa de construção, o cheiro a incenso. Sentamo-nos e saboreamos aquele encontro de sensações que se transmuta num estado de bem-estar indizível, quasi sublime, mas que pouco tem a ver com uma ordem canónica aprendida de Alberti ou Palladio, ou qualquer outro jogo de semiótica visual!
Uma arquitectura “orgânica” em que a experiência visual se integre numa experiência multisensorial do mundo à nossa volta, é muito capaz de quebrar o isolamento da arquitectura em relação à técnica. É uma das suas capacidades entre as quais avulta a de quebrar um outro isolamento mais profundo. O isolamento de paradigmas da arquitectura moderna em relação ao ambiente da nossa vida quotidiana que pouco tem a ver com os espaços desertos, estáticos, mergulhados num clima ideal e numa luz exata, plasmados no “meio etéreo” do papel vegetal ou "couchée", ou no meio electrónico dos computadores.
Não tenho a concepção optimista de que os graves problemas de ambiente que hoje sentimos, têm soluções meramente técnicas. Mas penso que elas passam, na arquitectura, por uma abertura conceptual apoiada na experiência reflectida, em interacção com as humanidades e as ciências aplicadas aos sistemas de habitar. Tal implica o apuramento de métodos de desenho que permitam o livre jogo entre programas complexos, sínteses formais e a sua realização, com a participação atempada de especialistas e a utilização de meios informáticos amigáveis, interactivos e fiáveis, no quadro de uma interdependência entre a prática e a teoria. Como disse Vitruvius Pollio: Fabrica & ratiocinatio.
(*) Excerto de um artigo na gaveta desde 1989
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