Reflexões Planetárias

Tuesday, June 05, 2012

Isto é uma vigarice pegada!

A lógica do capitalismo é a "do maior ganho financeiro pela inovação" segundo François Perroux. Eu diria, pelo artifício. Esta lógica do ganho pode convertê-lo num "racket legal organizado pela classe dominante" como o definiu Al Capone. Se não for controlado por um estado democrático forte, pode transformar-se numa vigarice pegada. E tenho para mim que a vigarice mais pegada é aquela em que vigaristas espertos vigarizam vigaristas estúpidos.

O conto do vigário contado por Fernando Pessoa(1)
Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa. Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.» «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos negociantes de gado como ele a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem. Houve então a troca de outro olhar.
O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as coisas todas certas. E ditou o recibo – um recibo de bêbedo, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar" (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbedo...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.
Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário «nem eu estava tão bêbedo que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça foi mandado em paz.
O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem.
Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade – nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.

As contas dos vigários... que nos põem a vida à razão de juros(2)
Como é que os mercados estabelecem os retornos das obrigações?
Um país emite obrigações a um preço de 1000 euros cada, a uma taxa de juros fixa de 5%. Portanto um investidor receberá um juro de 50 euros anualmente por cada obrigação que possuir.
Como é que a taxa aumenta?
Se surgirem dúvidas quanto ao pagamento da dívida por um país, o investidor tenta vender a obrigação – o que faz baixar o preço, por exemplo, para 900 euros. Quem comprar por 900 euros continua a receber os 50 euros de juros anuais, que em relação ao baixo preço de compra já lhe dá um juro anual de 5,6%.
Ainda por cima o novo comprador receberá ao fim dos 10 anos de maturação da obrigação os 1000 euros originais, de modo que se quando comprar a obrigação por 900 euros só faltarem, por exemplo, 3 anos para receber os 1000 euros, para ele os juros que  obtém passam a ser de 9 %.
Porque o investidor inicial resolveu vender, o país emissor da obrigação vai ter de pagar mais …Porquê?
Porque se o país precisar de se endividar mais, emitindo obrigações, tem de prometer pagar uma taxa de juros de pelo menos 9%, caso contrário os investidores limitam-se a comprar as obrigações em circulação que já lhes garantem os 9%.

Onde vamos! Como estamos longe do tempo em que o capitalismo nascente lutava pela liberdade da iniciativa privada contra as restrições municipais, do tempo em que uma proposta de Henrique II de França para o estabelecimento de um "banco tipo italiano", foi remetida pelos comerciantes da cidade de Paris para os teólogos (!), pois que o juro proposto, de 8%, lhes parecia não menos do que usurário, contrário ás leis de Deus, moralmente subversivo. Esta estória contada por Lewis Mumford dá-nos a medida da mutação de valores que se operou com o avanço de capitalismo nos últimos quinhentos anos. Hoje é a sociedade civil que se tem que libertar da ditadura financeira dos mercados.

O vigarista-mor que nos entrou em casa
Goldman Sachs, GS! Ao ler Marc Roche, fica-se com a ideia de que a GS é uma supermáquina. Uma sofisticada engenharia financeira serve, com a maior eficiência, um fim pré-determinado: no seu caso, ganhar dinheiro...
E, como todas as máquinas, não se rege por leis morais que só serviriam para atrapalhar! Não tem qualquer escrúpulo em aconselhar simultaneamente quem compra e quem vende um produto financeiro que "comercializa". Contratou recentemente um analista que instalou num remoto cubículo de 1.2x1.2m2, para dar pareceres pautados por princípios morais... que são referência para o que não se deverá fazer. Selecciona com rigor os melhores que são bem pagos e também liminarmente despedidos se necessário e conveniente. Tem vindo a colocar as suas peças em pontos-chave da economia e da política europeias (Mario Drahgi, Mario Monti, Lucas Papademos... e António Borges, veja-se o quilate deste clone).
O poder de instituições financeiras como estas é hoje enorme, mas elas estão hoje mais expostas e por isso mais vulneráveis.
Cabe aos governos democráticos, pressionados pelos cidadãos causticados pelas medidas de salvação do sistema bancário, metê-los na ordem.
Não serão concerteza governos como o do jota Passos Coelho e esta governança da (des)União Europeia, como estamos a (não querer) ver!
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(1)Texto recebido por mail com a seguinte nota: Publicado pela primeira vez no diário Sol, Lisboa, ano I, nº 1, de 30/10/1926, com o título de «Um Grande Português», foi publicado depois no Notícias Ilustrado, 2ª série, Lisboa, 18/08/1929, com o título de «A Origem do Conto do Vigário».
(2) Súmula de um powerpoint anónimo recebido por mail.

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