Reflexões Planetárias

Sunday, June 29, 2014

Elogio da fuga (1)

Século XVIII. Barcos portugueses, carregados de ouro do Brasil eram assaltados por corsários britânicos. Estima-se que a Inglaterra e a Holanda, campeãs do tráfego de ouro e escavos, se apropriavam ilegalmente de mais de metade do "quinto real" do metal que deveria receber do Brasil a coroa portuguesa. Grande parte do ouro de Minas Gerais apenas passava em trânsito por Lisboa. Segundo Celso Furtado, "a Inglaterra utilizou o ouro do Brasil para pagar importações essenciais de outros países concentrando as suas inversões no sector produtivo. Inovações rápidas e eficazes puderam ser aplicadas graças a esta gentileza histórica de Portugal. O centro financeiro da Europa deslocou-se de Amesterdão para Londres."(2)
O capitalismo moderno é uma história de piratas e corsários que, desde a "acumulação primitiva", prosseguiu numa competição abusiva pela apropriação da riqueza, sempre com a decisiva cumplicidade do poder político, até aos nossos dias, em que o poder se concentra em grandes grupos da finança e da economia: grande banca e empresas transnacionais (ETN).



Comandado por eles, o mercado, em que o abuso da inovação tecnológica exacerba a “eficiência lucrativa” do homo economicus, é hoje um vórtice entre a produção e o consumo. Este vórtice arrasta tudo e todos para uma corrida sem fim, em que ganham os mais entendidos no negócio e quase todos se perdem numa "sociedade estatistica". Uma massa imbecilizada por vontade da elite dominante, constitui como que uma sub-espécie moderna do "homo laborans" [H. Arendt], consumida numa divisão impossivel: a divisão entre o trabalho, cada vez mais precário e insignificante ("bullshit jobs", D. Graeber) e o consumo compulsivo.
Eis a "sociedade de mercado", "em que mandam as montras", como dizia Ortega y Gasset. Em que mandam "os mercados", como hoje se diz, confundindo deliberadamente o mecanismo (do mercado) com o maquinista (que manda nele).
Humanamente insuportável, não só para a massa dos perdedores mas tambem para a elite dos ganhadores, a própria sociedade de mercado, além de "fabricar o consenso" (W. Lipman, Herman-Chomsky), gera um vasto sistema de fugas descompressoras... e até lucrativas que se acrescentam ás tradicionais: novos psicofármacos, diversões maciças nos média (futebol a toda a hora, telenovelas, concursos, “reality shows”, filmes de acção), pacotes de férias, aventuras extremas, turismo exótico...
Muitos, inconformados, incapazes de se adaptar, fogem para longe do sistema, para o mundo imaginativo da arte e da religião ou para o que lhes abre a droga e o álcool. Finalmente há a "solução final" dos que fogem... suicidando-se.
Pode-se imaginar a grande fuga, numa alternativa utópica à sociedade de mercado que tudo corroi enquanto se globaliza, acabando por se esfacelar nos escolhos das suas contradições internas e das suas externalidades.
Das suas contradições internas, em que se perfila, na crise actual, o conflito entre o desemprego tecnológico e o imperativo do consumo: não sendo liquido que os baixos salários em empregos cada vez mais parasitários ("bullshit jobs") associados ao desemprego reduzam os custos de produção, mas sendo líquido que reduzem o poder de compra contraindo o consumo, o vórtice económico tende a estagnar.
Das suas externalidades sociais e ambientais que implicam rendimentos marginais decrescentes.

Robert Gilman antevê uma "era planetária" em gestação, fruto da imaginação liberta do conluio entre pulsões e automatismos sociais, esgotando-se a "era do império" centrada na dominação.
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(1) Inspirado em Henri Laborit (“Éloge de la fuite”, 1976)
(2) Eduardo Galeano, Las venas abiertas de América Latina, Siglo XXI España Editores S. A., 2010

Friday, June 20, 2014

Um caso de estudo

Amarrado durante uma semana à cama de um hospital público, ccnstitui-me como um caso de estudo.
Um ar parado, pesado, húmido, impregnado de cheiros de comida, de medicamentos e de químicos de limpeza, fez-me perder o sentido do gosto e, com ele, o apetite, desenvolvendo em mim um estado de enjôo permanente que atingiu os limites do suportável. Os passeios que, para o fim, dava pelos corredores, não melhoravam a situação.
Na minha deambulação frustrada, imaginei então a criação de uma sala no cimo do bloco operatório, onde os pacientes poderiam ir desenferrujar o corpo, conversar tanquilamente, gozando o ar puro e as desafogadas vistas de campo que são um dos maiores trunfos deste hospital. Do mesmo passo, aliviar-se-ia trasitoriamente a densa ocupação de quartos e corredores, facilitando a obtenção de melhores condições de higiene e conforto e facilitando o trabalho de enfermeiros e auxiliares. Objectou de seguida o sr. Zé Manuel, um dos meus simpáticos companheiros de quarto que isso levaria os doentes a querer permanecer mais tempo no hospital. Mas eu penso o contário: a recuperação poderia ser abreviada e, portanto, a permanência diminuida... pouco que fosse. A equipa clinica tem obviamente o controlo da situação.
Não pretendo, com esta ideia apresentar uma solução de fundo, para um problema que é de fundo. Há uma evidente falta de ventilação mecânica, num hospital moderno como este. Há quase um século, o arquitecto finlandês Alvar Aalto, depois de ter estado acamando, dedicou-se ao estudo de um hospital centrado na saúde e no bem estar do doente acamado. Tudo foi cuidadosamente pensado: a luz natural e as vistas, o ruído e, ficando-nos por aqui, a ventilação natural. E não se ficou pelo estudo. Esse hospital realizou-se. É o Sanatório de Paimio, Uma inestimável contribuição para os serviços hospitalares, menosprezada até hoje pelos nossos especialistas que tive a oportunidade de tratar aqui.
Voltando ao meu caso de estudo. Tinha estado no mesmo hospital público vai para dez anos. A qualidade do ar interior parece ter piorado, o que é gravissímo, pela insalubridade, pelo inconforto e pelo crescente risco das doenças hospitalares que impendem sobre doentes acamados, médicos, enfermeiras e auxiliares.
"En passant", a minha rendida homenagem a estas equipas de médicos, enfermeiras e auxiliares que mantinham a cabeça fria, a solicitude e mesmo a possível boa disposição, suportando violentas condições ambientais e humanas que nunca me tinha sido dado conhecer. É com um amargo sorriso nas lábios que escrevo estas linhas tendo como fundo uma intervenção do Primeiro Ministro na Assembleia da República debitando números e mais números que, para os sacerdotes da economia, traduzem matemáticamente a melhoria dos serviços de saúde. Espero que fique bem gravado na minha memória o gritante contraste que experimentei directamente, entre uma realidade que se degrada para todos nós e as abstrações macroeconómicas de um governo autista que se fecha cada vez mais num mundo de fantasia a que quer vergar a realidade... como Bush no Iraque! Isto está tudo ligado!
A qualidade de ar interior - a QAI, para os especialistas - pois é disso que se trata aqui, tornou-se preocupate nos últimos quarenta anos, com a multiplicação de grandes edifícios de serviços, como os hospitais, excessivamente dependentes de instalações de aquecimento, ventilação e ar condicionado - as instalações de AVAC para os especialistas - problemáticas ou mesmo inexistentes. Por isso, a comissão para a revisão dos regulamentos para a eficiência energética dos edifícios em que participei, conjugou na regulamentação de 2006 a eficiência energética e a QAI, entregando aos especialistas a responsabilidade de as garantir na concepção, na construção e na manutenção dos edificios. Uma importante medida preventiva que o Governo Passos Coelho, com aquela ligeireza que se lhe conhece, revogou o ano passado. Claro que será mais baixo o custo inicial do edifício, erradamente confundido com o seu custo, mas será mais alto o seu "custo ao longo do ciclo de vida", agravado por medidas correctivas resultantes de fiscalizações posteriores, mais caras, menos eficientes e mais pertubadoras do funcionamento do edfício. Trocar despesas a curto prazo por despesas a médio e longo prazo é hoje uma prática corrente dos governos regidos pelo ciclo eleitoral, coberta pelos economistas de serviço. Aqui temos um caso em que esta prática insensata pode ter consequências fatais, sendo apropriado designá-la por criminosa!(1)
A política de austeridade está, deliberadamente a cavar uma enorme divisão na nossa sociedade: de um lado, massas imbecilizadas pelos média em hospitais públicos desqualificados e, do outro, uma elite mimada em hospitais privados de luxo. Questão de status. Mas não é esta a visão da sociedade de Passos Coelho... se é que tem alguma?
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(1) Actualização em Maio de 2016: O nº 241 da revista "O Instalador" comenta "uma resolução da Assembleia da República (nº 55/2016 de 29 de Março) que recomenda a reintrodução da fiscalização da QAI. Nomeadamente nas auditorias. Sem consequências até ao momento". Esperemos que estejam para breve mais novidades, pois como defendem pioneiros na matéria como Olesen, Boestra e Seppänen, citados na revista a propósito, "uma declaração energética sem declaração de qualidade do ar interior não faz sentido".