Elogio da fuga (1)
Século XVIII. Barcos portugueses, carregados de ouro do Brasil eram assaltados por corsários britânicos. Estima-se que a Inglaterra e a Holanda, campeãs do tráfego de ouro e escavos, se apropriavam ilegalmente de mais de metade do "quinto real" do metal que deveria receber do Brasil a coroa portuguesa. Grande parte do ouro de Minas Gerais apenas passava em trânsito por Lisboa. Segundo Celso Furtado, "a Inglaterra utilizou o ouro do Brasil para pagar importações essenciais de outros países concentrando as suas inversões no sector produtivo. Inovações rápidas e eficazes puderam ser aplicadas graças a esta gentileza histórica de Portugal. O centro financeiro da Europa deslocou-se de Amesterdão para Londres."(2)
O capitalismo moderno é uma história de piratas e corsários que, desde a "acumulação primitiva", prosseguiu numa competição abusiva pela apropriação da riqueza, sempre com a decisiva cumplicidade do poder político, até aos nossos dias, em que o poder se concentra em grandes grupos da finança e da economia: grande banca e empresas transnacionais (ETN).
Comandado por eles, o mercado, em que o abuso da inovação tecnológica exacerba a “eficiência lucrativa” do homo economicus, é hoje um vórtice entre a produção e o consumo. Este vórtice arrasta tudo e todos para uma corrida sem fim, em que ganham os mais entendidos no negócio e quase todos se perdem numa "sociedade estatistica". Uma massa imbecilizada por vontade da elite dominante, constitui como que uma sub-espécie moderna do "homo laborans" [H. Arendt], consumida numa divisão impossivel: a divisão entre o trabalho, cada vez mais precário e insignificante ("bullshit jobs", D. Graeber) e o consumo compulsivo.
Eis a "sociedade de mercado", "em que mandam as montras", como dizia Ortega y Gasset. Em que mandam "os mercados", como hoje se diz, confundindo deliberadamente o mecanismo (do mercado) com o maquinista (que manda nele).
Humanamente insuportável, não só para a massa dos perdedores mas tambem para a elite dos ganhadores, a própria sociedade de mercado, além de "fabricar o consenso" (W. Lipman, Herman-Chomsky), gera um vasto sistema de fugas descompressoras... e até lucrativas que se acrescentam ás tradicionais: novos psicofármacos, diversões maciças nos média (futebol a toda a hora, telenovelas, concursos, “reality shows”, filmes de acção), pacotes de férias, aventuras extremas, turismo exótico...
Muitos, inconformados, incapazes de se adaptar, fogem para longe do sistema, para o mundo imaginativo da arte e da religião ou para o que lhes abre a droga e o álcool. Finalmente há a "solução final" dos que fogem... suicidando-se.
Pode-se imaginar a grande fuga, numa alternativa utópica à sociedade de mercado que tudo corroi enquanto se globaliza, acabando por se esfacelar nos escolhos das suas contradições internas e das suas externalidades.
Das suas contradições internas, em que se perfila, na crise actual, o conflito entre o desemprego tecnológico e o imperativo do consumo: não sendo liquido que os baixos salários em empregos cada vez mais parasitários ("bullshit jobs") associados ao desemprego reduzam os custos de produção, mas sendo líquido que reduzem o poder de compra contraindo o consumo, o vórtice económico tende a estagnar.
Das suas externalidades sociais e ambientais que implicam rendimentos marginais decrescentes.
Robert Gilman antevê uma "era planetária" em gestação, fruto da imaginação liberta do conluio entre pulsões e automatismos sociais, esgotando-se a "era do império" centrada na dominação.
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(1) Inspirado em Henri Laborit (“Éloge de la fuite”, 1976)
(2) Eduardo Galeano, Las venas abiertas de América Latina, Siglo XXI España Editores S. A., 2010