Reflexões Planetárias

Monday, September 18, 2006

De Fra Angelico a Bonnard

Uma leitura da Colecção Rau que esteve em exposição no MAA, desde 18 de Maio até 17 de Setembro.
Nesta caminhada da pintura de arte ocidental nos últimos 500 anos, de Fra Angelico a Bonnard, leio, além do mais, o progressivo abandono da construção de uma vida interior espiritual virada para o transcendente que se quer distante, separada, divorciada das coisas materiais. Ausente, acessória ou como pano de fundo de cenas bíblicas dominadas pelo simbolismo religioso, a natureza vai ganhando expressão até atingir o estatuto temático principal nas naturezas mortas e na pintura de paisagem. A natureza-expressão-de-Deus e depois a natureza selvagem e a humanizada. O simbolismo religioso vai dando lugar à expressão da natureza em si, que inclui a natureza humana, expressão que se extende também aos artifícios da sociedade. Começa pouco a pouco a desconstruir-se a velha visão espiritualista do mundo e a tatear-se novas formas de ver que cruzam o subjectivo com o objectivo, a cultura com a natureza que deixa de ser matéria vil ou mera expressão de Deus. Do "homo viator mundi" ao homem no mundo.

Sunday, September 17, 2006

A indústria nuclear volta a atacar


Foi no fim dos anos setenta que, aproveitando a crise do petróleo, a indústria nuclear lançou a primeira grande ofensiva que pude acompanhar.
Perdeu na comunicação social e nos vivos debates públicos,em que se confrontaram qualificados especialistas na matéria, outros técnicos e cientistas. Lembro-me de um manual de perguntas e respostas feito para ajudar os nuclearistas a convencer a população nos debates. Mas a população, dividida entre a indiferença e a oposição, não me pareceu convencida. Nota da época: quinze de Abril de 1976, ao toque do sino, habitantes de Ferrel concentraram-se no local onde se desenvolviam os trabalhos de prospecção para a futura central nuclear e "ordenaram a suspensão dos trabalhos, no que foram prontamente atendidos pelos operários".
Ferrel não foi para a frente. Por essa e por outras razões.
A indústria nuclear volta ao ataque, agora aproveitando a oportunidade da crise ambiental, designadamente enquanto medida de mitigação do aquecimento global.
Só agora? A crise ambiental já é do domínio público há cerca de quinze anos! Então porquê só agora? Talvez em parte, porque teve que fazer a travessia do deserto, depois do desastre de Chernobyl. Já lá vão vinte anos. A memória individual esbate-se com os anos e a social passa com as gerações.
E pronto.Cá estamos nós perante o novo argumento pró-nuclear de que a fileira nuclear não emite CO2.
Não sendo completamente verdadeiro, é no entanto um argumento de peso que levou alguns velhos ecologistas mais assustados a converter-se ao “mal menor” nuclear, como é o caso paradigmático de Lovelock.
Um trunfo de peso mas que tem que ser pesado, ponderado. O nuclear será mesmo um “mal menor”? Note-se que o IPCC, Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, excluía explicitamente (e suponho que ainda exclui) o nuclear das medidas de mitigação, malgrado as pressões que se pode imaginar exercerem-se sobre ele!
Desde logo temos que considerar que o nuclear apenas incide sobre a "produção" de energia elétrica. Importante, mas parte menor na energia que utilizamos nos edifícios e na indústria e cuja introdução nos transportes requer uma reconversão total.
Não nos esquecamos, por exemplo que cerca de metade da energia que utilizamos na habitação, para falar do que nos toca directamente a todos, vai para o aquecimento de água! Ora, usar a energia elétrica obtida numa central térmica, nuclear ou outra, para aquecer a água, o ambiente, ou seja o que for,é simplesmente absurdo. Usar calor para produzir eletricidade, desperdiçando dois terços em calor para, no final, converter o outro terço de energia "nobre" em...calor!
Quem poderá sustentá-lo, a não ser quem quizer vender eletricidade?
O exemplo não é fantasioso. Foi exactamente o que fez a EDF, a "EDP" francesa, para viabilizar a opção nuclear, contribuindo com a sua agressiva campanha do "tudo elétrico", para o abuso das máquinas e o consumismo que hoje justamente questionamos.
Aquecimento. Aqui temos uma bela aplicação da energia solar, no nosso clima ensolarado!
Mas, ripostam os adeptos do nuclear, o sol? O sol não é alternativa! Não precisamos de energia só para aquecer e não há sol para tudo!
Isso é verdade. Mas há aqui um vício de raciocinio que teremos que ultrapassar que é o de confundir a alternativa com uma só "forma de energia".
A alternativa "solar", digamos assim por extensão, é a conjugação da eficiência e da conservação de energia nos edificios e equipamentos, com a co-geracao e a utilização de um leque de energias endógenas, solar térmica e fotovoltaica, eólica, hídrica, biomassa, geotérmica e outras, de acordo com as nossas potencialidades regionais e locais. O levantamento deste potencial está feito. Quem quizer saber mais pode consultar a Sociedade Portuguesa de Energia Solar.
Nestes termos, a opção "solar" constitui, mais do que uma opção ambiental, uma decisiva contribuição para a nossa economia, a braços com a inseguranca do abastecimento energético associada ao "pico do petróleo", bem como uma oportunidade para a industria nacional.
Lembro que a nova regulamentacao energética, seguindo uma directiva europeia sobre esta matéria, tornou em principio obrigatória a instalação de colectores solares em novos edifícios. Que oportunidade para a indústria nacional.... se não nos limitarmos a importar equipamento!
Ah, pois é! A opção solar só é possivel numa sociedade organizada, mobilizada num projecto colectivo participado por todos, na construção de equipamentos e edificios, na sua manutenção e utilização. É um grande desafio para todos nós!
Decerto que é mais fácil a curto prazo, encomendar “mágicas” soluções chave-na-mão, seguindo os mecanismos de mercado, comandados por empresas ou indústrias sequiosas de clientes, como é o caso da energia nuclear que, na travessia do deserto, viu emagrecer drasticamente a sua carteira de encomendas e vê agora uma oportunidade para ajustar contas.
Mas esta via nuclear continua a ter custos elevados, entre os quais estão uma crescente dependência, na senda de uma concentração tecnico-económica, riscos de acidentes e atentados, sobrecustos financeiros na construção e desmantelamento das centrais. Sobrecustos a arcar pela sociedade através do Estado, para tornar competitivo o preço da energia nuclear e face aos riscos que as seguradoras não cobrem, na fase caótica em que nos encontramos.
E, evidentemente, o nuclear de fissão continua a ter pendente o problema da radioatividade no ciclo do combustível, associada à sua produção e ao enriquecimento, ao transporte, ao funcionamento da central e à deposição final. Um ónus que como se sabe, deixaremos como herança às futuras gerações por séculos e séculos.
Problemas graves que, logicamente a propaganda nuclear continuará a procurar calar ou, pelo menos, a desvalorizar.
Mas a alternativa "solar" tem um calcanhar de Aquiles, na medida em que carece de um projecto colectivo partilhado, numa sociedade que parece balançar entre a anarquia e o seguidismo.
Afinal, este não e um problema energético!
É um calcanhar de Aquiles sim, mas da nossa sociedade e que põe em causa a nossa sobrevivência como país dotado de vida própria. E é talvez por isso que poderemos vir ser arrastados para a opção nuclear. Um bom sinal se não formos.

S. Paulo

Parece-me que os jornais e a TV não têm dado importância a isto: http://observer.guardian.co.uk/magazine/story/0,,1872185,00.html?
Eu dou. E muita! Passo a explicar porquê:
As imagens de Strauss no Castelo de Schönbrun contrastam brutalmente com esta imagem distópica de S. Paulo.


"Castelos", condominios e resorts super-luxuosos como Dubai, contrastam significativamente com o vasto "planeta dos slums".
É para mim irresistível associar este contraste ao fosso que se cava entre ricos e pobres!

"Planeta dos Slums", "Planet of Slums" é como Mike Davis designa o vasto submundo em que se acumula, às centenas de milhar, qualquer dia por este andar aos milhares de milhão, a gente outrora pacífica dos campos de África, da Ásia e das Americas, expulsa pela agro-indústria de algodão, açúcar, café, bananas, ananazes e outros produtos de monoculturas bioquímicas ou transgénicas que fazem parte da nossa ementa quotidiana... Gente dos campos e as ondas de refugiados das guerras imperiais que se espraiam em campos de "concentração" (de refugiados), como podemos constatar hoje no Iraque, Líbano e num dos maiores slums do mundo: Gaza.
Mike Davis mostra à saciedade como as politicas de "ajustamento estrutural" do FMI e do Banco Mundial em conivência com governos corruptos de países do "terceiro mundo", contribuiram para tudo isto, com sacrifício de tudo e todos à "liberalizacao da economia", adoptando processos de expoliação que tive a oportunidade de conhecer quando andei em Moçambique pelas guerras de África .
Esta gente "sem terra" e sem emprego na cidade, gente desenraizada à força, das suas frágeis comunidades ancestrais, sobrevive hoje desesperadamente de expedientes, no meio de lixo urbano e de prédios decrépitos, ela própria reduzida a lixo humano. Empurrados para a criminalidade e para as prisões, são terreno fértil para fanáticos extremistas, gangs e redes mafiosas que dominam o "planeta dos slums" e o seu satélite: o submundo das prisões.
A polícia não só não penetra nos slums mas também parece não controlar as prisões, assistindo-se mesmo ao esbater das suas fronteiras com o mundo do crime organizado.
Não estamos aqui nas fronteiras do caos?
A esta luz se pode compreender melhor a "guerra contra o terrorismo", em que a policia é substituida pela tropa. Tropa que no Iraque e noutras guerras em "cidades" dos paises pobres, ensaia novas técnicas de contraguerrilha urbana à custa de milhares de mortos. Ensaios a escala natural como o foram o ataque aéreo a Dresden pela RAF, as bombas atómicas de Iroshima e Nagazaki na guerra de 39-45, em que morreram centenas de milhar de seres humanos, os desfolhantes como o "agente laranja" que enveneneram 2.5 milhões de hectares de floresta e 5 milhões de pessoas no Vietnam...
A frieza com que Madeleine Albright justificou a morte de quinhentas mil de crianças provocada pelas sanções contra o Iraque ("the price is worth it"), leva-me a pensar se não é isso mesmo que se pretende. Amedrontar e acantonar essa perigosa e desprezível gente "menos apta" esmagada na base da pirâmide social: lixo explosivo com emprego temporário nas "sweat shops" e em outros trabalhos aviltantes, a caminho do futuro desemprego tecnologico generalizado. O "controlo" dos slums evitaria o colapso e os "eleitos" que estão no vértice da pirâmide, poderiam mesmo sonhar com um mundo livre... da imperativa necessidade de viver na prisão dourada dos condominios fortificados!
Poderia continuar no mesmo registo, falando da classe média que se divide entre a imitação dos ricos e a luta contra a pauperização, de New Orleans e tutti quanti. Fico-me por aqui por hoje.
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Actualização em 12.Nov.12: S. Paulo, "La plus grande ville brésilienne est le théâtre d’un nouvel épisode de la guerre que se livrent les forces de l’ordre et le principal gang du pays: le Premier Commando de la Capitale. Bilan: près de 200 morts depuis trois semaines"