Reflexões Planetárias

Monday, July 07, 2014

Merkel visita de novo a China

A chanceler alemã Angela Merkel vai realizar até amanhã a sua sétima viagem oficial à China.

Não pelos lindos olhos em bico dos chineses, mas para os interessar na indústria alemã e captar os seus excedentes financeiros.
Captados esses excedentes, parte é canalizada para outros paises europeus como Portugal, para que continuem a comprar produtos alemães, em prejuizo do desenvolvimento orgânico das suas indústrias e fomentando o consumo compulsivo, na atractiva publicidade que sustenta os grandes média.
Incapaz de competir com a indústria alemã, cuja produtividade é adubada pelo inalcançável avanço tecnológico, Portugal é condenado nesta altura do campeonato, pelo governo de Passos Coelho, a apostar no salto impossível das exportações graças ao "empreendedorismo", afundando-nos cada vez mais numa dívida impagável.
Por este caminho, os activos cada vez mais magros de uma população cada vez mais envelhecida - quem quer ficar e ter filhos na perspectiva de uma austeridade sem fim? - estarão condenados a ser serventuários na hotelaria e similares para reformados da Alemanha e arredores. Caricatura de um país "ameno" que não me parece descabida.


Apanhados na "circulação de uma depressão" de natureza económica com "epicentro" na Alemanha, estamos do lado dos perdedores, em mais esta crise do gato-de-sete-foles do capitalismo. Só tomando a iniciativa de renegociar a divida poderemos sair dela. Suspeito que a maioria do povo não está disposta a sofrer os custos de o fazer e que o governo sabe disso, acompanhado pelos partidos do centrão dos interesses. Vidé resultados eleitorais.

Friday, July 04, 2014

A armadilha da dívida

Recuando na história recente do capitalismo moderno, até ás veias abertas na América latina, voltei a ler Eduardo Galeano que me lembrava falar do papel do ouro do Brasil.
Esgotado o filão do ouro, deixei-me levar por Galeano, um cativante contador de histórias, e detive-me em Manaus.
Em meados do século XIX, a capital mundial do comércio da borracha era Manaus, situada no coração da Amazónia.
"Os magnates da borracha edificaram aí as suas mansões de arquitectura extravagante, cheias de madeiras preciosas do Oriente, majolica de Portugal, colunas de mármore de Carrara e móveis de marcenaria francesa. Os novos ricos da selva mandavam vir os mais caros alimentos do Rio de Janeiro, os melhores costureiros da Europa talhavam os seus trajes e vestidos; mandavam os seus filhos estudar em colegios ingleses. O teatro Amazonas, monumento barroco de bastante mau gosto, é o simbolo maior da vertigem daquelas fortunas do princípio do século: o tenor Caruso cantou para os habitantes de Manaus na noite da inauguração, por uma quantia fabulosa depois de subir o rio através da selva"
...
Muitos poderão ficar encantados com o "teatro" discordando de Galeano, mas como desligar o verso do reverso? Como não acompanhar Galeano na sua indignação, face ao cenário da devastação que se passava nos "bastidores" de uma sociedade visceralmente tão desigual?
Tanta ostentação de tão poucos assentava na exploração mercantil da árvore da borracha e da força de trabalho de tantos seringueiros, condenados a um labor insano numa vida sem futuro.
"Alguns autores estimam que não menos do que meio milhão de nordestinos sucumbiram ás epidemias, ao paludismo, à tuberculose e ao beriberi, no auge do periodo da borracha."
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"Não só a febre, também os esperava, na selva, um regime de trabalho bastante parecido com a escravatura. O trabalho pagava-se em espécie - carne seca, farinha de mandioca, rapadura e aguardente - até que o seringueiro saldasse as suas contas, milagre que raramente acontecia."
A propósito, conheci em Moçambique, em pleno século XX, uma situação idêntica, em que os indígenas eram obrigados a cultivar algodão que trocavam nas "cantinas" por meios de subsistência, sendo enganados no peso, na quantidade e nos preços.
Voltando à história contada por Eduardo Galeano: "Havia um acordo entre os empresários para não dar trabalho aos trabalhadores com dívidas pendentes e, os guardas rurais, colocados nas margens dos rios, atiravam sobre os fugitivos. Somavam-se dívidas sobre dívidas. À dívida original pelo transporte do trabalhador vindo do nordeste, somava-se a dívida pelo instrumentos de trabalho" (...) "e como o trabalhador comia e sobretudo bebia, porque nos seringais não faltava aguardente, quanto maior era a antiguidade do trabalhador maior era a dívida acumulada"
Igual propósito tinha o "imposto de palhota" que, no final do século XIX, o governo português instituiu nas suas colónias de África: uma dívida imposta que amarrava os indígenas a um trabalho assalariado para a pagar.
E hoje, cá estão os portugueses amarrados à armadilha da conversão de uma dívida privada numa dívida pública impagável que os impede de fazer a sua vida. Outrora, os povos colonizados eram obrigados a trabalhar para companhias majestáticas pela força, expoliando-os das suas terras. Hoje, subjugados pelo serviço da dívida os estados são presa dos mercados de capitais e os povos, perdida a sua ligação á terra, são presa do mercado de trabalho, incapazes de satisfazer as necessidades artificialmente desmultiplicadas na sociedade de consumo compulsivo em que vivemos.

Thursday, July 03, 2014

Ainda o caso do Hospital Pulido Valente

Assisti há dias a um debate na Assembleia da República, transmitido pela televisão, em que o Ministro da Saúde foi interpelado sobre a situação do Hospital Pulido Valente (HPV).
Em segundos, passou pelo assunto como cão por vinha vindimada. Iria eu pelo mesmo caminho se não tivesse acabado de ler uma mensagem de Elsa Soares Jara, pneumologista do HPV, datada de Dezembro passado. A mensagem denuncia com meridiana clareza a cumplicidade entre o governo Passos Coelho e grandes interesses privados, conjugando a exploração do Serviço Nacional de Saúde com a apropriação da cidade, pelo que merece ser conhecida e amplamente discutida. Eis pois, a traços largos o que diz a mensagem que pode ser lida na integra aqui.

"O Hospital Pulido Valente é actualmente o oitavo hospital em Lisboa com encerramento planeado, não contando com os que já foram encerrados e estão devolutos e, portanto, não aproveitados para outros fins dentro da área da saúde, como os Hospitais de Arroios (devoluto há vinte anos), do Desterro e o Miguel Bombarda.
Aos outros seis (que são o de S. José, Santa Maria, Sto António dos Capuchos, Dona Estefânia, Curry Cabral e Maternidade Alfredo Costa) junta-se ainda o Instituto Gama Pinto, localizado na Colina de Santana."
"Trata-se portanto da eminente destruição irreversível do património material e imaterial, científico, histórico e humano da cidade de Lisboa. São Hospitais de referência ao nível das diversas especialidades médicas e cirúrgicas"
...
"Encontram-se, em notícias dispersas, argumentos falaciosos para o encerramento destes seis Hospitais: um Hospital novo e moderno para substituir os Hospitais velhos e "antiquados" (fazendo a associação errada do Hospital de Todos os Santos a construir em Chelas, à medicina que se deve praticar no século XXI) e que os custos de manutenção de hospitais já construídos e reabilitados são maiores do que os custos de um Hospital a construir (e também a respectiva manutenção)"
Tudo isto está de facto por provar, estando hoje até na ordem do dia na Europa e nos Estados Unidos a reabilitação de edifícios e das cidades como a prática mais "sustentável".
Argumentos falaciosos, para Elsa Jara.
"A intenção para o encerramento de tantos hospitais parece ser só uma: favorecimento dos Hospitais PPP. O esquema do encerramento de todos estes Hospitais também é semelhante: constroi-se um Hospital PPP que abrange a área do Hospital a encerrar e agrega-se este Hospital (oficialmente ou não) a um ou mais Hospitais. Os serviços dos Hospitais que se quer encerrar vão sendo extintos, porque já não se justificam. No caso do Hospital Pulido Valente, o hospital PPP em questão é o Hospital de Loures (na área do HPV) e o Hospital ao qual foi recentemente agregado é o Hospital de Santa Maria (onde, como é óbvio, existem todos os serviços a encerrar no HPV)".(1)
Aqui temos a cumplicidade entre o governo Passos Coelho e grandes interesses privados na exploração do Serviço Nacional de Saúde.
Mas será então esta a intenção? Não é só esta! A própria Elsa Jara denuncia também a cumplicidade paralela entre o governo Passos Coelho e grandes interesses privados na apropriação do espaço público da cidade, aliás em continuidade com governos do Partido Socialista, mas numa escala nunca antes alcançada. Aqui temos o centrão dos interesses.
"Há poucos anos, por meio de engenharia financeira, a Estamo, empresa do Ministério das Finanças, "comprou" estes hospitais ao Ministério de Saúde e encomendou, discretamente, sem concurso público, os projectos para os terrenos libertados pela destruição. Também não foi dado a conhecer qual o financiamento mas já há projectos e maquetas pagos (em Julho passado (2), a Estamo, o arquitecto representante da Câmara Municipal de Lisboa e os arquitectos responsáveis pelos vários projectos apresentaram, em sessão pública, na Ordem dos Arquitectos, os referidos projectos de arquitectura)."(3)

Senhores arquitectos, meus caros colegas, agora atentem bem na conta em que esta pneumologista tem os edifícios:
"A importância das pedras do edifício não se resume, como bem se sabe, apenas ás suas valiosas e históricas paredes. É a continuidade destes edifícios - hospitais e universidades que edifica e transmite o saber médico nas suas diversas valências. A interrupção estrutural material é invariavelmente uma amputação ao desenvolvimento imaterial da medicina".
Poderemos generalizar dizendo: A importância das pedras do edifício não se resume ás suas valiosas e históricas paredes. É a continuidade destes edifícios que edifica e transmite o saber viver da sociedade que acomodam. A interrupção estrutural material é invariavelmente uma amputação ao desenvolvimento imaterial da sociedade.
Neste elevado entendimento há edificios, bocados de cidade, cidades inteiras que ganham uma dimensão social que não cabe no tabuleiro da "eficiência lucrativa" em que são instrumentalizados pelos grupos dominantes. Tal como os arquitectos, mesmo os que "estão conscientes disso mas se sujeitam a trabalhar no quadro que lhes é imposto, embora não o considerem o mais desejavel", como observa o neurocirurgião Henri Laborit no seu estudo sobre a cidade como efeito da sociedade ("L´Homme et la Ville").
Há arquitectos que perfilham essa dimensão social; esses pertencem a outra história que está a ser forjada mas que não é publicitada. Poderá vir a ser a história do futuro.
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(1) O HPV integra, com o Hospital de Santa Maria, o CHLN (Centro Hospitalar de Lisboa Norte, EPE) criado em 2008. O CHLC (Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE) criado em 2007, integra os Hospitais de São José, Santo António dos Capuchos, Santa Marta e da Estefânia. O Decreto-Lei nº44/2012 de 23 de Fevereiro de 2012 procedeu à extinção e integração por fusão no Centro Hospitalar de Lisboa Central, do Hospital Curry Cabral e da Maternidade Dr. Alfredo da Costa. O Hospital Júlio de Matos integra, com o Hospital Miguel Bombarda, o CHPL (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa)
(2) 9 Julho de 2013
(3) A propósito, ELsa Jara, recorda-nos o caso do Hospital Júlio de Matos que, ao tempo da Ministra Leonor Beleza (1985-1990), esteve em risco de ser vendido para dar lugar a um empreendimento imobiliário segundo projecto do arquitecto Tomás Taveira, então na crista da onda.