Que futuro para (o centro de) Leiria
"Zara fecha loja em edifício histórico do centro de Leiria".
"Incêndio alerta para falta de segurança no centro histórico".
Duas recentes noticias na primeira página de um jornal de Leiria:
O Centro Histórico de Leiria envelhece e arde sob o signo da desertificação!
Envelhecem as casas e as pessoas; com elas vai morrendo o comércio de proximidade, substituido por bares e restaurantes, animados a desoras pelo vai vem dos jovens estudantes que pela noite dentro invadem ruas e praças, em prejuízo da privacidade e da conveniência dos habitantes.
Não é de hoje esta espécie de abandono.
Há um século que o palpitar quotidiano da cidade foi deixando de passar por este velho coração que se esvazia.
Começou com o abandono da Câmara Municipal que, diga-se de passagem, ao deixar o centro histórico não polarizou um novo centro cívico digno desse nome.
O "mercado de cereais" deixou a Praça Rodrigues Lobo e foi para o "mercado fechado" de Ernesto Korrodi, o "novo" Mercado de Santana que se substituiu ao convento que lhe deu o nome. O velho Abadia da praça fechou mas, enquanto durou o trânsito de passagem (Salazar virava no "sinaleiro" para almoçar no Santiago!), os cafés prosperaram no "largo dos cafés", o "Largo de Santana" junto ao mercado... Entretanto, o mercado foi rio abaixo com a urbanização corrida da Herois de Angola que trocou a vinha por prédios, estendendendo pelos aluviões do Liz a "banalidade charra" que Raul Proença via na Leiria moderna dos anos vinte. Lá foi rio abaixo juntamente com os "cafés" e o teatro, entregando-se ao camartelo a réplica oitocentista do S. Carlos, encantadoramente provinciana; no seu lugar está hoje um vazio, decorado com uma desgarrada "fonte luminosa" moderna que acabou por encontrar par na "nova" Caixa Geral dos Depósitos pela arte casamenteira do arquitecto Chorão Ramalho.
O movimento centrífugo da habitação e do comércio acelerou nos últimos cinquenta anos sob o signo da especulação imobiliária propiciada pela lei dos loteamentos de Marcelo Caetano e, depois, pela apressada delimitação da REN que foi preversamente explorada, na ausência de uma lei de solos defensora do interesse público que é indispensável "para que o estado, representando o bem comum, recupere a capacidade de fazer cidade".
Leiria suburbaniza-se ameaçando colar-se à Marinha Grande. Os suburbanitas circulam entre os loteamentos onde moram (mas não se demoram) e os locais de trabalho onde se gastam, dispersos pelas freguesias circundantes que hoje já não são campo mas também não são cidade.
Deslocando-se de carro -a dispersão favorece o carro e o carro a dispersão- encontram nas "grandes superfícies" periurbanas o comércio a toda a hora e um quantum de animação de que precisam, num ambiente (de ar) condicionado, "confortável" e "seguro"... bem como o estacionamento garantido e gratuito que não encontram no Centro Histórico.
Façamos pois do Centro Histórico um grande centro comercial?
Penso que não! A experiência de Victor Gruen em Fresno foi um fracasso! Atribui-se este insucesso ao facto de não ter sido cumprida uma parte importante do plano de Gruen que consistia em complementar o eixo comercial com habitação, mas também a uma alteração da política urbanistica pelo poder público que, cedendo aos interesses, abandonou o centro em favor da dispersão urbana -urban sprawl- apoiada em grandes centros comerciais periurbanos.
Só um Centro Histórico habitado, integrado numa cidade quiçá policêntrica servida por um mix de transportes, poderá sobreviver à atracção das "grandes superfícies", oferecendo algo que elas não poderão proporcionar: o seu carácter histórico identitário marcado pela vetusta presença do castelo e da sé, o pitoresco dedalo das suas ruas e praças, a sua chã mas irrepetível urbanidade caldeada pelos tempos e pelas gerações, a qualidade urbana que a Leiria moderna não conseguiu alcançar.
O grande desafio será o de demonstrar que numa reabilitação atenta ao pormenor, a diversidade da cidade histórica poderá satisfazer pessoas de diversas idades e condições que são sensíveis a estas intangíveis qualidades, mas que também não prescindem da adequada acessibilidade, e se pautam pelos actuais padrões da segurança e de conforto doméstico. São essas pessoas e suas famílias e não uma população flutuante que poderão conferir vida própria à cidade histórica.