No meio de mais uma depressiva pane da
"grande transformação" mas sem perder a fé no progresso, fustigados pelas trapalhadas que nos criaram os deuses e sacerdotes do "mercado", não nos apercebemos de que por detrás da actual crise financeira que atravessa a globalização capitalista, se perfila uma outra muito mais profunda que joga com leis ininfringíveis e irrevogáveis:
a crise ecológica que os sacerdotes do mercado remeteram para segundas núpcias, abrigados na (discutível) concavidade da EKC, a
"curva ambiental de Kuznets".
Imaginemos o que seria das nossas vidas e da globalização, se triplicasse o preço dos combustíveis.
Toda a nossa vida moderna repousa no consumo dos combustíveis fósseis. Se eles deixarem de ser baratos e abundantes, ela desmorona-se como um castelo de cartas, não havendo um "plano B" credível.
Que eu saiba não há.
O que há é uma teia de insanas contradições!
Os senhores que agora estão a munir-se de proventos anuais de seiscentos mil euros, poderão pensá-los como uma folga, uma "almofada" capaz de proteger o seu bem-estar contra o brutal aumento do custo de vida durante o resto da sua vida, mesmo se tiverem hoje a idade dos Coelhos,
mas acentuar-se-à brutalmente o fosso entre os super-ricos septuagenários que poderão pagar a hemodiálise
e os "outros", os pobres, a populaça.
A conflitualidade social aumentará e com ela as medidas de segurança. Não da segurança social mas da outra, a policial, em cidades sitiadas...
Transcrevo um texto que escrevi há cerca oito anos. Vai-me servir de base para futuras (e sombrias) reflexões como esta sobre a actual crise financeira.
"Deixo a autoestrada e entro na estação de serviço. Enquanto atesto o depósito, olho os números que desfilam sem parar e interrogo-me sobre o que será o “dia depois de amanhã”? O “petróleo” abundante irá deixar-nos com as “alterações climáticas” e a recessão aprofundada pela escassez? Será possível um futuro com menos “petróleo”, mas porventura mais feliz?
Interrogações algo apocalípticas inspiradas na hipotética decadência de um império do “petróleo”?
Mas o que nos mostra uma perspectiva temporal da utilização da energia dos combustíveis fósseis, na larga escala de alguns milhares de anos, antes e depois do momento presente? Mostra-nos que a utilização se mantem relativamente baixa até ao século passado. Inflecte então e dispara como um tiro de canhão até atingir um "pico", para logo a seguir cair em flecha, regressando à "velocidade de cruzeiro" anterior:
Ou seja, este tiro de canhão na exploração de combustiveis fósseis que faz andar a nossa sociedade industrial e sustenta o nosso “crescimento económico” , será uma ocorrência fugaz e “irrepetível”!
Vista de perto, a realidade revela-se mais acidentada e assimétrica. No entanto, isto não põe em causa nem a validade nem a pertinência desta abrangente “perspectiva” sobre a "Energia dos Combustíveis Fósseis", originalmente publicada na revista Science em 4 de Fevereiro de...1949.
O autor da comunicação era um dos mais informados especialistas na matéria: o geólogo Marion King Hubbert, então responsável por grandes campanhas de sondagens, por conta do Estado e de grandes companhias de petróleo como a Shell Oil Company. Conhecia muito bem o comportamento dos jazigos.
Baseado no que sabia sobre recursos energéticos e técnicas de exploração, ele admitia que o tal “pico” – correspondente à utilização, compensadora em termos de energia, de 80% das existências - duraria apenas cerca de três séculos quanto ao carvão e menos de setenta anos, até cerca de 2030, quanto ao petróleo. Não avançava limiares para o gás natural que era mal conhecido à escala mundial, mas estimava que o potencial energético das suas existências seria bem inferior ao do petróleo: cerca de 40%.
Recusando a energia nuclear por considerar inadmissíveis os seus riscos, King Hubbert admitia, na parte final da comunicação, como sendo então "ainda possível estabilizar a população num número razoável e, com a ajuda da energia solar e de meios materiais pouco “energívoros”, manter indefinidamente uma civilização industrial."
E , sem trair o seu credo “tecnocrático”, concluia sobre as importantes consequências sociais da sua abrangente “perspectiva”: "Se esta possibilidade será uma realidade, ou se continuaremos a fazer mais do mesmo padecendo sucessivas crises -sobrepopulação, esgotamento de recursos e o eventual declínio- isso dependerá muito de sermos capazes de ultrapassar o nosso grave desfasamento cultural [...] Está nas nossas mãos eliminar este desfasamento e evoluir para uma cultura em conformidade com os limiares que nos colocam as propriedades básicas da matéria e da energia, de que largamente depende a nossa civilização".
Cinquenta e quatro anos depois, em Maio do ano passado, numa teleconferência internacional da ASPO (Association for the Study of Peak Oil) sediada no Instituto Francês do Petróleo, um dos conferencistas manifestava a convicção de que o tal "pico" do petróleo está por aí. Questão de anos. E prosseguia: "... Se estiver certo, as consequências serão devastadoras. Infelizmente, o mundo não tem nenhum plano B para este caso. Os factos são demasiado sérios para serem ignorados..."
O dono destas preocupações é o sr. Mattew Simmons, banqueiro com um volume de negócios de 56 biliões de dolares que investe no petróleo, membro do Grupo de Trabalho para a Energia do vice-presidente Cheney em 2001, apoiante e conselheiro da actual Administração Bush!
O fundamentado alerta de Hubbert afogou-se na maré de imparável optimismo que avançava com o progresso tecnológico, nos prósperos “anos de ouro” do pós-guerra. Mas o abuso da técnica conduziu à crise energética que se declarou nos anos setenta e à crise ambiental, publicamente reconhecida nos anos oitenta.
O sombrio alerta de Simmons já transpira um estado de espírito menos optimista, enquadrável na perspectiva de Hubbert que se insinuou na esfera do poder económico com o Relatório do Clube de Roma, publicado na véspera do “embargo do petróleo” (em 1972) e que envolve agora claramente o poder político.
Mas as medidas de política energética e ambiental andam devagar... quando andam! Somos levados a admitir que os nossos governantes, insuficientemente convencidos, se demitem por interesse ou incapacidade, continuando a iludir-nos com boas noticias do género "a retoma está aí". Continuam a iludir-nos com questões e promessas conjunturais porque nós queremos ser iludidos e, portanto, não votaremos neles se nos derem noticias “más”.
Maleficios da democracia representativa? Talvez. Mas, juntando as ideias que vão correndo, estou em crer que sejam alimentados por uma arrogância cultural, servida por uma doutrina económica autista que não reconhece os limites naturais ao crescimento, no contexto de uma ignorância generalizada. Particularmente no nosso país: 80% da população portuguesa entre os 25 e os 64 anos não tem o décimo segundo ano de escolaridade!
Assim sendo, como poderemos sair a tempo deste “desfasamento cultural” , no sentido de uma participação activa e concertada da “sociedade civil” que obrigue os governantes a respeitar um projecto colectivo à altura do desafio que enfrentamos?
O desafio de pôr termo à escalada, em vez de persistir no “jogo (sujo) do empurra” em que atiramos para os nossos filhos o tal “pico do petróleo” e a sua crescente conflitualidade social e ambiental. Pôr termo à escalada e iniciar a descida para o vale da energia, recusando qualquer solução autoritária ditada pela tecnologia ou pelos “mercados”. Desafio de monta, se admitirmos que o fim da energia abundante e barata põe em causa o crescimento económico que sustenta a nossa sociedade de consumo.
Para responder ao desafio, dispomos em Portugal de potencialidades endógenas que teimamos em menosprezar. O nosso meio técnico-científico diz-nos que são significativas e que sabemos como fazer. Mas, a presente situação parece demonstrar que pouco se poderá fazer, se estas preocupações no domínio dos meios, não forem imperativas para os “utilizadores finais” que somos todos nós.
O que nos leva ao outro ponto que pretendemos focar: o da necessidade de uma ampla participação num projecto colectivo, tendo em conta que a substituição dos combustíveis fósseis por fontes renováveis, a maior eficiência energética das máquinas e a conservação de energia, têm que ser enquadradas em grandes mudanças sociais, no nosso modo pensar, construir e utilizar o território em que nos é dado viver, se pretendemos deixar aos nossos filhos o mundo favorável que herdámos dos nossos antepassados.
Fausto Simões
Orbis@netcabo.pt
Cacela 11.09.04"