Assisti há dias a um debate na Assembleia da República, transmitido pela televisão, em que o Ministro da Saúde foi interpelado sobre a situação do Hospital Pulido Valente (HPV).
Em segundos, passou pelo assunto como cão por vinha vindimada. Iria eu pelo mesmo caminho se não tivesse acabado de ler uma mensagem de Elsa Soares Jara, pneumologista do HPV, datada de Dezembro passado. A mensagem denuncia com meridiana clareza a cumplicidade entre o governo Passos Coelho e grandes interesses privados, conjugando a exploração do Serviço Nacional de Saúde com a apropriação da cidade, pelo que merece ser conhecida e amplamente discutida. Eis pois, a traços largos o que diz a mensagem que pode ser lida na integra
aqui.
"O Hospital Pulido Valente é actualmente o oitavo hospital em Lisboa com encerramento planeado, não contando com os que já foram encerrados e estão devolutos e, portanto, não aproveitados para outros fins dentro da área da saúde, como os Hospitais de Arroios (devoluto há vinte anos), do Desterro e o Miguel Bombarda.
Aos outros seis (que são o de S. José, Santa Maria, Sto António dos Capuchos, Dona Estefânia, Curry Cabral e Maternidade Alfredo Costa) junta-se ainda o Instituto Gama Pinto, localizado na Colina de Santana."
"Trata-se portanto da eminente destruição irreversível do património material e imaterial, científico, histórico e humano da cidade de Lisboa. São Hospitais de referência ao nível das diversas especialidades médicas e cirúrgicas"
...
"Encontram-se, em notícias dispersas, argumentos falaciosos para o encerramento destes seis Hospitais: um Hospital novo e moderno para substituir os Hospitais velhos e "antiquados" (fazendo a associação errada do Hospital de Todos os Santos a construir em Chelas, à medicina que se deve praticar no século XXI) e que os custos de manutenção de hospitais já construídos e reabilitados são maiores do que os custos de um Hospital a construir (e também a respectiva manutenção)"
Tudo isto está de facto por provar, estando hoje até na ordem do dia na Europa e nos Estados Unidos a reabilitação de edifícios e das cidades como a prática mais "sustentável".
Argumentos falaciosos, para Elsa Jara.
"A intenção para o encerramento de tantos hospitais parece ser só uma: favorecimento dos Hospitais PPP. O esquema do encerramento de todos estes Hospitais também é semelhante: constroi-se um Hospital PPP que abrange a área do Hospital a encerrar e agrega-se este Hospital (oficialmente ou não) a um ou mais Hospitais. Os serviços dos Hospitais que se quer encerrar vão sendo extintos, porque já não se justificam. No caso do Hospital Pulido Valente, o hospital PPP em questão é o Hospital de Loures (na área do HPV) e o Hospital ao qual foi recentemente agregado é o Hospital de Santa Maria (onde, como é óbvio, existem todos os serviços a encerrar no HPV)".(1)
Aqui temos a cumplicidade entre o governo Passos Coelho e grandes interesses privados na exploração do Serviço Nacional de Saúde.
Mas será então esta a intenção? Não é só esta! A própria Elsa Jara denuncia também a cumplicidade paralela entre o governo Passos Coelho e grandes interesses privados na apropriação do espaço público da cidade, aliás em continuidade com governos do Partido Socialista, mas numa escala nunca antes alcançada. Aqui temos o centrão dos interesses.
"Há poucos anos, por meio de engenharia financeira, a
Estamo, empresa do Ministério das Finanças, "comprou" estes hospitais ao Ministério de Saúde e encomendou, discretamente, sem concurso público, os projectos para os terrenos libertados pela destruição. Também não foi dado a conhecer qual o financiamento mas já há projectos e maquetas pagos (em Julho passado (2), a Estamo, o arquitecto representante da Câmara Municipal de Lisboa e os arquitectos responsáveis pelos vários projectos apresentaram, em sessão pública, na Ordem dos Arquitectos, os referidos projectos de arquitectura)."(3)
Senhores arquitectos, meus caros colegas, agora atentem bem na conta em que esta pneumologista tem os edifícios:
"A importância das pedras do edifício não se resume, como bem se sabe, apenas ás suas valiosas e históricas paredes. É a continuidade destes edifícios - hospitais e universidades que edifica e transmite o saber médico nas suas diversas valências. A interrupção estrutural material é invariavelmente uma amputação ao desenvolvimento imaterial da medicina".
Poderemos generalizar dizendo: A importância das pedras do edifício não se resume ás suas valiosas e históricas paredes. É a continuidade destes edifícios que edifica e transmite o saber viver da sociedade que acomodam. A interrupção estrutural material é invariavelmente uma amputação ao desenvolvimento imaterial da sociedade.
Neste elevado entendimento há edificios, bocados de cidade, cidades inteiras que ganham uma dimensão social que não cabe no tabuleiro da "eficiência lucrativa" em que são instrumentalizados pelos grupos dominantes. Tal como os arquitectos, mesmo os que "estão conscientes disso mas se sujeitam a trabalhar no quadro que lhes é imposto, embora não o considerem o mais desejavel", como observa o neurocirurgião Henri Laborit no seu estudo sobre a cidade como efeito da sociedade ("L´Homme et la Ville").
Há arquitectos que perfilham essa dimensão social; esses pertencem a outra história que está a ser forjada mas que não é publicitada. Poderá vir a ser a história do futuro.
____________________________________________________
(1) O HPV integra, com o Hospital de Santa Maria, o CHLN (Centro Hospitalar de Lisboa Norte, EPE) criado em 2008. O CHLC (Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE) criado em 2007, integra os Hospitais de São José, Santo António dos Capuchos, Santa Marta e da Estefânia. O Decreto-Lei nº44/2012 de 23 de Fevereiro de 2012 procedeu à extinção e integração por fusão no Centro Hospitalar de Lisboa Central, do Hospital Curry Cabral e da Maternidade Dr. Alfredo da Costa. O Hospital Júlio de Matos integra, com o Hospital Miguel Bombarda, o CHPL (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa)
(2) 9 Julho de 2013
(3) A propósito, ELsa Jara, recorda-nos o caso do Hospital Júlio de Matos que, ao tempo da Ministra Leonor Beleza (1985-1990), esteve em risco de ser vendido para dar lugar a um empreendimento imobiliário segundo projecto do arquitecto Tomás Taveira, então na crista da onda.