Os três mundos da arte
"A arte apresenta-se como uma divindade de três faces"(1).
Três faces, três mundos. O artista, joga com o mundo exterior e o seu mundo interior no mundo intermédio que é a obra de arte.
Seja o pintor. O pintor joga com aqueles dois mundos no mundo intermédio do quadro.
Mas a pintura é sempre expressão do mundo interior do pintor. Considerando que o homem externaliza o seu mundo interior e internaliza o mundo exterior, o pintor ao externalizar o seu mundo interior, poderá indirectamente externalizar no plano do quadro o mundo exterior nele refractado. Tendo isto em consideração, o pintor pode centar-se no mundo exterior tal como no mundo interior e, ainda, no mundo do quadro.
Pode centrar-se no mundo exterior, como por exemplo na pintura de paisagem ou na de género.
Tomando a pintura de género: os quadros de de Hoock ou Vermeer não são, no entanto, meros retratos da vida burguesa da Holanda de seicentos. Eles contêm sem dúvida alusões simbólicas e um sentido moralista, mas sobretudo, estes pintores exaltam deliberadamente a beleza do quotidiano e não o poder, levando-nos a valorizar a qualidade sensível do nosso quadro de vida, a atentar no mais intimo recanto, "a apreciar a mais pequeno gesto dirigido ás coisas e aos seres à nossa volta" (Tzvesan Todorov).
Pode centar-se no seu mundo interior, como por exemplo no romantismo e no expressionismo. Em Caspar David Friedrich, como em Edvard Munch, mesmo as paisagens não são tanto a reprodução de um mundo exterior. mas mais a expressão do mundo interior dum homem do seu tempo... o que mostra que o mundo interior tem raizes profundas no exterior, na natureza.
Na natureza, não só na sociedade! Desde o dealbar da consciência humana: Na pintura eidética do paleolítico a psique parece estar dominada pela natureza.
Pode centar-se no próprio mundo do quadro num formalismo objectivo, pretendidamente sem referências subjectivas ao mundo interior e a particularidades regionais do mundo exterior, como no neoplasticismo(2). Rietveld ficou muito indignado quando Sigfried Giedion tentou demonstar que as "formas neutras" de Mondrian se enraizavam na paisagem e na tradição holandesas. "É verdade que a obra de arte provoca em nós certas reacções físicas: consciencializamos ritmo, harmonia e unidade e estas propriedades físicas mexem com os nossos nervos. Mas tranquilizam-nos, mais do que os agitam." As neurociências evidenciam hoje uma dinâmica cerebral que se pode expressar no plano do quadro, numa composição abstrata de linhas, formas e cores.
Esta espécie de chave para a apreciação da pintura pode ser aplicada à arquitectura?
Se encararmos a arquitectura como uma arte exclusivamente visual, poderá ser. Equiparamos assim a casa (o espaço arquitectónico) ao plano do quadro, mas numa "experiência em que estamos imersos enquanto que a nossa relação com uma pintura ou uma sinfonia é de simples exposição", como faz notar John Marston Fitch.
Considerando esta imersão enquanto corporal e sinestésica, poderemos entender a arquitectura como uma arte, não só visual, mas multisensorial inserida na vida quotidiana, sendo assim inerente à arquitectura, uma componente de ordem prática em que a ordem sensível (e não só visual) se conjuga com a ordem prática da construção e da utilização que na pintura tem uma importância marginal.
Designando por função a ordem prática da utilização e da construção, poderemos dizer, com Rudolf Arnheim que "a função desempenha o mesmo papel na estética de uma casa ou de um carro que desempenha o conteúdo numa pintura ou numa escultura". Aliás, para Arnheim, "a função é o conteúdo central de toda a arte aplicada".
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(1) René Huyghe (1965). Os poderes da imagem. Livraria Bertrand SARL, Amadora
(2) Herbert Read, em "The Meaning of Art", descrimina "três fases" na actividade artística: percepção, formalização e expressão. Sejam a "percepção-formalização" o domínio da "beleza" e da estética e a "expressão" o da "vitalidade"; "beleza" e "vitalidade" são os dois polos da arte segundo Read (Herbert Read, "Icon and Idea") que equiparo aos dois polos de Worringer (Wilhelm Worringer, "Abstraktion und Einfühlung") "abstração" e "empatia". Quedar-nos-íamos neste caso na segunda fase do processo criativo, domínio do "equilibrio" estético, do belo e da abstracção.
Autores dos quadros reproduzidos: Johannes Vermeer, Caspar Friedrich, Piet Mondrian.