"Householding"?
Na economia de mercado, é o mercado que manda na sociedade, e nele o dinheiro enquanto capital. Por isso nela se consuma o que se designa por capitalismo.
É coisa recente. Menos de dois séculos. Ao contrário do que pensavam os pais fundadores da economia clássica (Adam Smith, à cabeça) e pensam ainda hoje os mandarins e sacerdotes da nossa "sociedade de mercado".
Devemos a Karl Polanyi uma investigação antropológica pioneira que nos mostra que a economia evoluiu ao longo dos tempos seguindo três princípios fundamentais... e que deles não faz parte o lucro mercantil .
Entendamo-nos! Não é que o mercado tenha surgido só no século xix, mas sim que ele, quando existia, estava dentro da sociedade e não o contrário. Tal como fisicamente acontecia nas cidades em que os mais velhos como eu ainda tiveram a sorte de viver.
Então quais são esses três princípios, segundo Karl Polanyi?
Reciprocidade, redistribuição e householding (1).
Householding!? Foi na busca de um convincente significado em português que fui parar a um texto de Harriet Fasenfest que me encheu as medidas e que aqui quero reproduzir na integra traduzido em português:
O que é householding?
Tem graça, como me tornei tão cerebral em relação ás lides domésticas. Seria de pensar que, depois de conversar com a minha mãe e com os seus amigos - agora nos seus oitentas – ficaria mais realista quanto a tudo isso. Seria certamente o caso, ao ouvir falar da trabalheira que dava e quão felizes se sentem hoje por não ter que cozinhar, de limpar e de cuidar das crianças (nem todos, mas muitos o fizeram).
Tendo crescido numa era de grandes opções para as mulheres, nunca teria olhado para trás, nunca teria considerado o cuidar da casa como algo digno der ser valorizado. Ou, pelo menos, eu compreendia as consequências socio-políticas de relegar um dos géneros para uma vida sem competências que se traduzissem em carreiras. Certamente arriscado.
Quer dizer, quantas mulheres se viram no fim da linha, depois de os maridos zarpararem para paragens mais verdejantes? Ou mesmo que não se tivessem ido embora (e muitas o desejariam) quantas mulheres se sentiram extremamente estupidificadas com a trabalheira das lides domésticas?
Certamente que conhecemos histórias de mulheres sós e frustadas enxarcando-se em cocktails e Valium, nos seus escassos assomos de liberdade.
Então porque é que, revisitar esta coisa chamada “cuidar da casa” (ou, mais exatamente, householding), não me sai da cabeça (2)? Bem, porque creio que deitámos fora o bébé com a água do banho.
Acredito que há muito por descobrir na vida doméstica, mas para isso, temos que desafiar muitas das nossas suposições e estereótipos. Temos que questionar as nossas noções de sucesso e a forma como elas se ligaram a uma doutrina económica assaz inconsiderada.
Mas sobretudo, porque sou uma mulher com nervo suficiente para o fazer. Se este movimento ganhar força, haverá indubitavelmente legiões de negacionistas a contrariar “o direito de regresso” que reclamo. Mas não me assusto. Sou viril, e faço bolinhos.
Sou mãe e esposa, mas não por ter medo de ser outra coisa. Apelo para a revisão da política de género no que se refere à gestão da casa. Alguns são bons nisso outros não, o que não tem nada a ver com o está debaixo das calças (por assim dizer).
Posto isto, quero juntar os pontos, ou rever os pontos:
1.Householding não é um acto específico de género
2.Householding procura rever os sistemas de pequena escala da economia doméstica
3.Householding rejeita fast food, embrulhos vistosos, ou publicidade comercial
4.Householding requer uma ligação aos sistemas naturais
5.Householding reconhece a domesticidade como um valor
6.Householding recusa as “economias de escala” como sendo sistemas malignos
7.Householding procura um ambiente saudável, a família, a comunidade como barómetro do seu sucesso
8.Householding recusa a mercantilização das tarefas diárias
9.Householding é alguma coisa que estou a tentar compreender.
Essencialmente, apelo para um regresso a casa como acto político, atitude económica, movimento espiritual. Apelo para o regresso porque necessitamos disso. Apelo porque, quanto mais mentes criativas entrarem em acção, melhores serão as soluções. Apelo para o regresso, porque é preciso que alguém esteja em casa quando nela ocorrem actividades que são “importantes”. Alguém tem que estar à porta a receber as nossas crianças e ouvir as suas histórias. Alguém tem que criar os espaços tranquilos, seguros, descontraídos da nossas vidas íntimas.
Quem será agora?
Honestamente: Umas vezes o esforço é estupidificante, mas outras vezes (quase sempre) impregna-o a lógica renovada de cuidar da casa e a economia sustentável. É certo que a nossa actual crise económica nos mostrou justamente quanto é fragil/corrupto o sistema dominante, mas não precisavamos do crash para o constatar. Não, se quizessemos pensar bem nisso.
Hoje, quando vou à mercearia, olho para os produtos com outros olhos. Numa perspectiva antropológica impressiona-me vivamente a forma como eles (quem quer que sejam) convertem tudo o que posso fazer por mim própria em qualquer coisa que fazem para mim – por um preço.
Mas qual é o preço? Qual foi o preço de vender as nossas vidas? O que foi feito do ambiente? O que é foi feito das nossas famílias? O que foi feito das nossa espiritualidade, da nossa economia, das nossas almas? São questões de retórica, porque a maioria de vós conhece as respostas.
De certeza que alguns se encontram de regresso a casa por razões fora do seu controlo e estão em apuros. Outros (e o seu número está a crescer) fazem-no conscienciosamente. Seja qual for a razão, acredito que estamos perante uma grande oportunidade de transformação.
Criar novas economias, economias domésticas, economias baseadas em sistemas prudentes de abastecimento, procura, produção e consumo, levará a pôr mãos à obra numa revolução dos cuidados caseiros. Levar-nos-à a abandonar a matriz mercantil dominante. Implicará a reavaliação das carências e necessidades, No final, poderá requerer uma nova legião radical de “viris fazedoras de bolinhos” para desafiar o paradigma económico dominante.
Oh sim, é disso que estou a falar.
Que bela definição de householding, na linha de uma alternativa ao "moneteísmo" que consome a nossa vida quotidiana!
Fica-me por saber qual o significado em português. Mas que importa a palavra. Deixemos ficar por enquanto o householding em aberto. "Householding é alguma coisa que estou a tentar compreender".
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(1) Karl Polanyi, La subsistance de l´homme - La place de l´économie dans l´histoire et la société, Flammarion(2011).
(2) Uma notula histórica sobre a mulher e a família, para contextualizar o regresso ao lar que não sai da cabeça de Harriet Fasenfest.
Tradicionalmente, a mulher é associada à intimidade do lar e ao seu papel centrado na fecundidade: A casa uterina adquire a sua mais bela expressão nas formas redondas e interiorizadas da arquitectura de terra ou enterrada, nos antípodas da casa moderna transparente e leve.
Lar, fogo! "A palavra latina para coração, nota Margaret Visser, é focus; a centralidade da cozinha como coração da casa, nasce não só do papel tradicional da mulher como cozinheira, mas também da associação natural da comida à fecundidade."
"A imagem da mulher encerrada na domesticidade é algo que o feminismo redondamente rejeita."
É este feminismo a que se refere Elizabeth Farrelly (em Blubberland, MIT Press, 2008) que, nos tempos de juventude de Harriet Fasenfest, atirava as mulheres para o mercado de trabalho na busca de uma realização pessoal.
Ao mesmo tempo, "um a um, os bens de consumo duráveis do século xx - com a própria casa à cabeça - acabaram com vastas e necessárias áreas de contacto social entre os membros da familia e entre famílias. A imagem da família continua forte, reforçada pela publicidade comercial dominante, mas na realidade ela desmorona-se, a ponto de se tornar irreconhecível. As forças produtivas em que se apoia estão a contribuir fortemente para o seu colapso. Está em todo o caso bem arredada do organismo descrito na sua definição histórica."
Esta é a visão crítica de Martin Pawley ( em The Private Future, Thames & Hudson, 1973) sobre o estado da família moderna, precisamente nos tempos de juventude de Harriet Fasenfest, quando definhavam os anos de ouro keynesianos do pós-guerra.
Fasenfest avança em defesa de um papel activo e central da mulher na família e da família na sociedade, distanciando-se das feministas capturadas pela sociedade de mercado de hoje e das militantes "engenheiras domésticas" na linha de Christine Friederick na primeira metade do século xx. Fasenfest aproxima-se de feministas dos primordios do capitalismo novecentista como Catherine Esther Beecher que estudaram, realizaram e divulgaram um modelo de organização da casa (householding afinal), em favor da emancipação da mulher e da família. O que Beecher não tinha, nem podia ter então, eram as preocupações sociais e ambientais que fazem toda a diferença no modelo de vida famliar que Fasenfest está a desenvolver e a divulgar e, no qual, a mulher tem um papel central.