Foi no fim dos anos setenta que, aproveitando a crise do petróleo, a indústria nuclear lançou a primeira grande ofensiva que pude acompanhar.
Perdeu na comunicação social e nos vivos debates públicos,em que se confrontaram qualificados especialistas na matéria, outros técnicos e cientistas. Lembro-me de um manual de perguntas e respostas feito para ajudar os nuclearistas a convencer a população nos debates. Mas a população, dividida entre a indiferença e a oposição, não me pareceu convencida. Nota da época: quinze de Abril de 1976, ao toque do sino, habitantes de Ferrel concentraram-se no local onde se desenvolviam os trabalhos de prospecção para a futura central nuclear e "ordenaram a suspensão dos trabalhos, no que foram prontamente atendidos pelos operários".
Ferrel não foi para a frente. Por essa e por outras razões.
A indústria nuclear volta ao ataque, agora aproveitando a oportunidade da crise ambiental, designadamente enquanto medida de mitigação do aquecimento global.
Só agora? A crise ambiental já é do domínio público há cerca de quinze anos! Então porquê só agora? Talvez em parte, porque teve que fazer a travessia do deserto, depois do desastre de Chernobyl. Já lá vão vinte anos. A memória individual esbate-se com os anos e a social passa com as gerações.
E pronto.Cá estamos nós perante o novo argumento pró-nuclear de que a fileira nuclear não emite CO2.
Não sendo completamente verdadeiro, é no entanto um argumento de peso que levou alguns velhos ecologistas mais assustados a converter-se ao “mal menor” nuclear, como é o caso paradigmático de Lovelock.
Um trunfo de peso mas que tem que ser pesado, ponderado. O nuclear será mesmo um “mal menor”? Note-se que o IPCC, Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, excluía explicitamente (e suponho que ainda exclui) o nuclear das medidas de mitigação, malgrado as pressões que se pode imaginar exercerem-se sobre ele!
Desde logo temos que considerar que o nuclear apenas incide sobre a "produção" de energia elétrica. Importante, mas parte menor na energia que utilizamos nos edifícios e na indústria e cuja introdução nos transportes requer uma reconversão total.
Não nos esquecamos, por exemplo que cerca de metade da energia que utilizamos na habitação, para falar do que nos toca directamente a todos, vai para o aquecimento de água! Ora, usar a energia elétrica obtida numa central térmica, nuclear ou outra, para aquecer a água, o ambiente, ou seja o que for,é simplesmente absurdo. Usar calor para produzir eletricidade, desperdiçando dois terços em calor para, no final, converter o outro terço de energia "nobre" em...calor!
Quem poderá sustentá-lo, a não ser quem quizer vender eletricidade?
O exemplo não é fantasioso. Foi exactamente o que fez a EDF, a "EDP" francesa, para viabilizar a opção nuclear, contribuindo com a sua agressiva campanha do "tudo elétrico", para o abuso das máquinas e o consumismo que hoje justamente questionamos.
Aquecimento. Aqui temos uma bela aplicação da energia solar, no nosso clima ensolarado!
Mas, ripostam os adeptos do nuclear, o sol? O sol não é alternativa! Não precisamos de energia só para aquecer e não há sol para tudo!
Isso é verdade. Mas há aqui um vício de raciocinio que teremos que ultrapassar que é o de confundir a alternativa com uma só "forma de energia".
A alternativa "solar", digamos assim por extensão, é a conjugação da eficiência e da conservação de energia nos edificios e equipamentos, com a co-geracao e a utilização de um leque de energias endógenas, solar térmica e fotovoltaica, eólica, hídrica, biomassa, geotérmica e outras, de acordo com as nossas potencialidades regionais e locais. O levantamento deste potencial está feito. Quem quizer saber mais pode consultar a Sociedade Portuguesa de Energia Solar.
Nestes termos, a opção "solar" constitui, mais do que uma opção ambiental, uma decisiva contribuição para a nossa economia, a braços com a inseguranca do abastecimento energético associada ao "pico do petróleo", bem como uma oportunidade para a industria nacional.
Lembro que a nova regulamentacao energética, seguindo uma directiva europeia sobre esta matéria, tornou em principio obrigatória a instalação de colectores solares em novos edifícios. Que oportunidade para a indústria nacional.... se não nos limitarmos a importar equipamento!
Ah, pois é! A opção solar só é possivel numa sociedade organizada, mobilizada num projecto colectivo participado por todos, na construção de equipamentos e edificios, na sua manutenção e utilização. É um grande desafio para todos nós!
Decerto que é mais fácil a curto prazo, encomendar “mágicas” soluções chave-na-mão, seguindo os mecanismos de mercado, comandados por empresas ou indústrias sequiosas de clientes, como é o caso da energia nuclear que, na travessia do deserto, viu emagrecer drasticamente a sua carteira de encomendas e vê agora uma oportunidade para ajustar contas.
Mas esta via nuclear continua a ter custos elevados, entre os quais estão uma crescente dependência, na senda de uma concentração tecnico-económica, riscos de acidentes e atentados, sobrecustos financeiros na construção e desmantelamento das centrais. Sobrecustos a arcar pela sociedade através do Estado, para tornar competitivo o preço da energia nuclear e face aos riscos que as seguradoras não cobrem, na fase caótica em que nos encontramos.
E, evidentemente, o nuclear de fissão continua a ter pendente o problema da radioatividade no ciclo do combustível, associada à sua produção e ao enriquecimento, ao transporte, ao funcionamento da central e à deposição final. Um ónus que como se sabe, deixaremos como herança às futuras gerações por séculos e séculos.
Problemas graves que, logicamente a propaganda nuclear continuará a procurar calar ou, pelo menos, a desvalorizar.
Mas a alternativa "solar" tem um calcanhar de Aquiles, na medida em que carece de um projecto colectivo partilhado, numa sociedade que parece balançar entre a anarquia e o seguidismo.
Afinal, este não e um problema energético!
É um calcanhar de Aquiles sim, mas da nossa sociedade e que põe em causa a nossa sobrevivência como país dotado de vida própria. E é talvez por isso que poderemos vir ser arrastados para a opção nuclear. Um bom sinal se não formos.