Reflexões Planetárias

Wednesday, August 10, 2011

Arte e sociedade

É corrente pensar que os pintores expressam, como ninguém, sentimentos e ideias por meio das imagens e que vivem num mundo subjectivo à parte.
É uma ideia que o individualismo romântico ajudou a propagar, mas que de modo algúm pode ser generalizada.
É de crer que as imagens vitalistas de bisontes, incisas na obscuridade das grutas madalenenses eram instrumentos psicológicos, espirituais, indispensáveis à sobrevivência na pré-historia da nossa humanidade.
Está largamente comprovado que os arquitectos e pintores da Idade Média tiveram um papel fundamental na construção e na propagação da religiosidade medieval.
No dealbar da modernidade, artistas consagrados como Rubens ou Vasari participaram, directamente e ao mais alto nível, nas relações de poder do seu tempo.
Rubens viveu, na Flandres católica, um período de grande tensão politica e religiosa, tendo sido frequentemente encarregado de missões diplomáticas em que usou literalmente a sua arte, como nos conta Gombrich.
Numa delas, pintou a sua "Alegoria sobre as virtudes da paz" que ofereceu a Carlos I de Inglaterra para o induzir a fazer a paz com Espanha.

Vasari foi consultor de Cósimo de Medici, um dos "pais fundadores" do capitalismo moderno.
Pelo que nos diz Eric Wynn, Vasari não foi apenas protegido de um mecenas, mas um verdadeiro consultor político que envolveu argumentação da sua arte numa campanha publicitária que concebeu com o objectivo de reabilitar Cósimo da desgraça em que caira no meio financeiro.
Entretanto, foram-se os Medici e, com eles o seu poder, mas ficaram as obras de arte renascentista que continuam a contribuir para a beleza e para o equilíbrio financeiro de cidades como Florença e Veneza.
Nada nos comprova que os artistas e as suas obras vivem à margem da sociedade. Mesmo quando as suas obras manifestam uma interiorização subjectiva, se poderá entender que elas não fazem mais do que contribuir para a construção do individualismo em que se denuncia a fragmentação social do mundo em vivemos hoje.
Nestes termos, a arte não é um mero reflexo, mas acto de construção social.

Tuesday, August 09, 2011

"Isto é criminalidade pura e simples"

O que nos mostra a televisão é a violência em acção!
Bandos de marginais que vandalizam e roubam, confrontados com forças policiais que, usando da conveniente dureza, procuram conter a violência criminosa e restabelecer a ordem pública.
Um confronto entre as forças do mal e as forças do bem que se desenrola perante o olhar atento de muita gente que, à distância nas ruas e nas varandas armadas em camarotes, assiste passivamente ao desenrolar dos acontecimentos como se de um "reality show" se tratasse.
A fronteira entre a realidade e a ficção esbate-se, se é que existe.
O discurso de Cameron regressado à pressa das suas férias toscanas, situa-se exatamente neste quadro de violência.

"Isto é criminalidade pura e simples!" afirma peremptóriamente Cameron.
É o que se vê no "reality show" televisivo.
Mas será?
Não haverá por debaixo desta onda de violência uma realidade mais profunda e anterior que aqui vem e à superfície das águas, no mar turbulento da sociedade inglesa?
Tudo leva a crer que sim e que andamos muito distraídos...
E que, se continuarmos distraídos, reagindo com estupefação e brigadas de limpeza, a "ondas de violência" como se fossem calamidades naturais, cairemos nas malhas de soluções técnicas securitárias de pendor "lidístico" que só agravam a espiral da violência.
Existe já hoje no mercado global uma ampla panóplia destas soluções à disposição da administração pública e das grandes empresas privadas, como nos mostra Stephen Graham em "Cities under siege".
Nesse sentido distópico em que caminha uma certa Europa, vão ganhando status os "condomínios fechados" e "gated communities", em desfavor da vivência do espaço público que se converte numa "selva urbana" em "cidades sitiadas".
Esta consolidação da espiral de violência tornará cada vez mais difícil conter as clivagens sociais que se extremaram nos últimos trinta anos de "darwinismo" neoliberal.

Saturday, August 06, 2011

A Democracia e a Arte

Porque é que o capitalismo actua hoje com tanta brutalidade, quando os Medici nos deixaram tanta beleza em Florença e Veneza?


Os Medici eram uma família aristocrática de poderosos mercadores e banqueiros na fronteira da modernidade, mas ainda a três séculos da eclosão da democracia na América e em França que Alexis Tocqueville, dotado de uma aguda intuição, acompanhou de perto com grande aprumo científico e político.
Num tempo em que, palavras de Tocqueville em "Da Democracia na América","os destinos do mundo cristão parecem suspensos, enquanto uns atacam a democracia como uma força inimiga, sem verem que ela está ainda em pleno crescimento, os outros adoram-na como um deus surgido do nada"...
E interroga a seguir: "Que se deve pedir à sociedade e ao governo?". Porque para responder a esta pergunta é preciso assentar ideias sobre o que queremos, Tocqueville confronta um "modelo" aristocrático, digamos "fáustico" para usar a expressão de Spengler, com um outro democrático:
"Queremos dar ao espírito humano uma certa elevação, uma magnanimidade na maneira de ver as coisas deste mundo? Queremos inculcar nos homens uma espécie de desprezo pelos bens materiais? Queremos que despertem ou se enraízem convicções profundas, de maneira a que surjam grandes dedicações? Polir os costumes, melhorar o trato, dar brilho ás artes? Queremos poesia, espalhafato, glória? Queremos que o povo se organize de maneira a exercer pressão sobre todos os outros povos? Desejamos que se lance em grandes empreendimentos para que, seja qual for o resultado dos seus esforços, deixe um grande lugar na história. Se é esse o objectivo principal que querem ter os homens vivendo em sociedade, não devem escolher um governo democrático porque com ele nunca o alcançarão."
"Mas se pensarmos que é útil dirigir a actividade moral e intelectual do homem para as necessidades da vida material, empregando-a na produção de bem estar; se a razão nos parece mais proveitosa para os homens do que o génio, se o fim em vista não é o de criar virtudes heróicas mas hábitos pacíficos; se admitirmos que existam alguns defeitos mas não se cometam crimes, que se realizem menos acções grandiosas mas que haja menos preversidade, se em vez de querermos evoluir numa sociedade brilhante, nos contentamos em viver numa sociedade que prospera, enfim, se para nós o objectivo principal do governo não deve ser o de dar á nação inteira o máximo de força e de glória, mas sim o de dar a cada indivíduo o máximo de bem estar e o mínimo de miséria, então consideremos os cidadãos iguais e optemos por um governo democrático."

Admitamos que Tocqueville acertou em cheio, que ainda hoje os nossos destinos estão suspensos e a democracia está ainda imatura. A pergunta inicial tem então uma resposta adequada: a "brutalidade" resultará dessa imaturidade face à potência tecnológica do capitalismo impante, num tempo ainda de transição em que a democracia ainda não consolidou a sua forma de beleza própria que não será "grandiosa" mas porventura "chã"... como a arquitectura de Alvar Aalto.
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Fonte da imagem: commons.wikimedia.org

Tuesday, August 02, 2011

Crescimento, crescimento, crescimento

...o crescimento económico é em última instância e a longo prazo, fundamental para a satisfação de praticamente todos os outros objectivos."
Victor Bento, 2011

Na pior das hipóteses o crescimento é, para os menos optimistas, "o melhor distribuidor da riqueza" (Santos Pereira, 2011).
Melhor ou ilusório?
Na melhor das hipóteses, os optimistas acreditam que a sociedade caminha para a felicidade com a prosperidade proporcionada pelo crescimento económico.
"Os políticos, gestores de grandes empresas e investidores que acreditavam nesta pressuposição não se aperceberam de que a prosperidade se limitava a uma pequena parte da população do mundo... que se apoiava no trabalho opressivo dos mais pobres de todo o mundo e que os seus custos ecológicos crescentes ameaçavam toda a vida na terra incluindo a dos supostamente mais prósperos."
"As nações "desenvolvidas" atribuiram ao "mercado livre" o estatuto de um deus, sacrificando-lhe os agricultores, os campos e as comunidades, as suas florestas, zonas húmidas, prados, os seus ecossistemas e bacias hidrográficas. Aceitaram a poluição universal e o aquecimento global como custos normais do negócio." (Wendell Berry)
Um sonho que se converteu num pesadelo!
Victor Bento como Santos Pereira ("Crescimento, crescimento, crescimento"), pertencem ás hostes do que ainda acreditam no optimum de Pareto que confere aos economistas do mercado protagonismo na conquista da felicidade, ou pelo menos na melhor distribuição da riqueza. Estamos a ver os resultados! Da "retoma está aí" de Manuela Ferreira Leite, passámos a uma tímida hipótese de começar a "crescer" daqui a dois anos.
Não contesto a necessidade conjuntural de um ponderado crescimento económico em Portugal.
Outra coisa diferente e contestável é a crença no crescimento económico ilimitado que menospreza a "capacidade de carga" dos ecossistemas, os "limites naturais ao crescimento" de que falava o relatório Meadows há quase quarenta anos, com consequências dramáticas que são hoje difíceis de escamotear.
Os econoptimistas continuam a menosprezá-los no mantra do crescimento económico e na persistente utilização do PIB (Produto Interno Bruto) para medir a dimensão da economia e o seu crescimento.
O PIB fez parte de um conjunto de instrumentos de gestão utilizados por Keynes para gerir a economia britânica nos tempos difíceis da II Grande Guerra, mas a evolução das economias ocidentais converteu o PIB no que é hoje: um instrumento absurdo ao serviço de um crescimento insustentável.



O PIB, tal como o seu parente PNB (Produto Nacional Bruto), mistura indiferenciadamente benefícios e custos quantificáveis e ignora a importancia capital das "externalidades": não tem sensibilidade social nem ecológica.
Simon Kuznets, um dos arquitectos deste indicador económico, não caucionou a utilização do PIB como indicador de bem-estar de uma nação. A Agenda XXI, saída da conferência do Rio de 1992, já contemplava a revisão do PIB. Têm vindo a ser desenvolvidos indicadores alternativos que procuram balancear e valorizar devidamente ganhos e perdas sociais e ambientais, tais como o Genuine Progress Indicator ou o Happy Planet Index.

A revisão do PIB não pode deixar de estar no topo da agenda das organizações da sociedade civil que em Portugal pugnam por maior justiça social e sensibilidade ambiental. Desde logo porque nesta sociedade "à razão de juros" o que não é contabilizado não conta.
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Fontes:
-Bento, Victor (2011). Economia Moral e Política. Fundação Francisco Manuel dos Santos/Relógio D´Àgua Editores, Lisboa
-Pereira, Álvaro Santos (2011). Portugal na hora da verdade. Gradiva Publicações S.A. Lisboa
-Berry, Wendell. Thoughts in the Presence of Fear

Observação: A legenda do vídeo contem vários entorses linguísticos. Entre eles temos a tradução brasileira de "scorecard" por "placar". Não é um verbo mas um substantivo. Leia-se "quadro de objectivos" ou indicadores.

Monday, August 01, 2011

A ameaça nuclear (continua)

Pelo NYT se fica a saber que a tradicional confiança dos japoneses no Estado está a ser abalada pela resposta errática do governo ao acidente de Fukushima Daiishi, o qual foi objecto de anterior reflexão.
Como seria de esperar, a geometria dos círculos de segurança não corresponde á pluma de contaminação radioativa que depende dos ventos que reinam de sudeste e da orografia, como se vê no mapa.
Com orientações destas é compreensível que as populações se sintam inseguras.


E eis que irrompe um activismo que não está nos habitos da sociedade japonesa. A senhora Okoshi, entrevistada pelo NYT, está entre o crescente número de cidadãos que tomaram a iniciativa de comprar um dosímetro, medir a radiação e confrontar as autoridades com a sua criminosa negligência.
Olhando o espectro de sofrimento que paira sobre tanta gente que vivia pacificamente na sua terra, assalta-me um revoltado cepticismo perante os estudos de viabilidade económica que manobram os riscos e remetem para os cidadãos os custos insustentáveis que não são cobertos pelas seguradoras; tudo revestido por uma capa de "optimismo" herdado do Dr. Pangloss: Tudo irá bem neste nosso "admirável mundo novo"!
... Mas não vai! Cuidemo-nos!