Reflexões Planetárias

Friday, March 23, 2012

Estate

E forse un po' di pace tornerà *

Nós, que nos toca a Bossa Nova e o Jazz, ainda mais nos toca a sua fusão pela flauta mágica de Ali Ryerson.... Este é outro mundo!
Bem diferente deste mundo profano, inseguro e sem graça em que somos diariamente causticados pela interminável verborreia dos números.



O belíssimo tema - Estate - é uma elegia de Verão de Bruno Martino que poderão ouver aqui na versão de João Gilberto, aqui na versão de Chet Baker com Philip Catherine, aqui na versão de Shirley Horn, aqui na versão de Ângela Hagenbach, aqui na verão de "Nossa alma canta", aqui na versão de Robeta Gambarini/Enrico Rava.
Li aqui este comentário sobre o tema: "Esta melodia é tao bela que brincar com ela é um erro. As melhores versões são aquelas em que os músicos respeitam o claro-escuro das tensões e resoluções" (1).
É o que sinto em Ali Ryerson, bem como em todos os outros que selecionei.
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(1) Quem souber ler música pode seguir em detalhe, aqui, o jogo das tensões e resoluções harmónicas, potenciado pela melodia de Martino e apoiado na batida da bossa nova, e até acompanhar a dedilhação na viola de João Gilberto.

E aqui temos a letra original em italiano. Letra singela e chã, ao modo de todas as letras da bossa nova. Celebrando o amor que, como dizia Vinicius, "é infinito enquanto dura", como a felicidade e a vida... Daí, o claro-escuro das tensões na atmosfera de profunda tranquilidade de uma tarde de Verão... em que "o barquinho vai":

*Estate
Sei calda come il bacio che ho perduto
Sei piena di un amore che è passato
Che il cuore mio vorrebbe cancellare

Estate
Il sole che ogni giorno ci scaldava
Che splendidi tramonti dipingeva
Adesso brucia solo con furor

Tornerà un altro inverno
Cadranno mille pètali di rose
La neve coprirà tutte le cose
E forse un po' di pace tornerà

Estate
Che ha dato il suo profumo ad ogni fiore
L' estate che ha creato il nostro amore
Per farmi poi morire di dolor

Estate

Tempestade em Lisboa

As nossas relações com o clima são hoje, cada vez mais mediadas pelos conhecimentos que nos proporciona o avanço da ciência e pelos meios que nos disponibiliza o progresso tecnológico. Beneficiamos, é certo, de previsões mais fiáveis e de um tentador conforto mecânico, mas não podemos evitar dependências tecnológicas e energéticas e as implicações ambientais que vêm por acréscimo.
A par destas implicações de ordem prática existe uma outra, de ordem sensível que tem sido ignorada que é o empobrecimento do trato directo com o mundo à nossa volta.
É nos espíritos mais sensíveis, naturalmente, que vamos encontrar o exercício e o testemunho da complexidade das nossas relações com o clima, como é o caso de Proust que já abordei em reflexão anterior.
Entre muitos outros, vem agora ao caso Mircea Eliade que nalgumas linhas das suas memórias nos fala do frio e do calor, da chuva e da neve, dos fenómenos extremos e das variações do tempo e de como tudo isso é vivido e sentido por quem não perdeu as suas ligações com o mundo à sua volta.
Retrato vivo da nossa região de Lisboa, para mais!

Mircea Eliade demorou-se em Portugal cerca de quatro anos durante a IIª Grande Guerra. Viveu em Lisboa, no nº 147 da Rua Elias Garcia, mas também, logo nos primeiros tempos, numa pequena "villa" que alugou em Cascais, atraído pelo pitoresco da acolhedora vila piscatória de então.
Vamos então ás memórias em que fala do tempo:
13 de janeiro de 1945: "Acordo de manhã com a tempestade a bater-me nas janelas. Flocos grandes de neve, tal como ainda não tinha apanhado em Portugal. (É verdade que desde o Natal se abateu um frio "polar", como escrevem os jornais e que, a semana passada, morreram cinco pessoas com o gelo).
O mar está cinzento e agitado. E o olhar acompanha as gaivotas que não percebem o que se passa, voando desorientadas sobre as ondas nevadas... Quando desco ao hall, a tempestade intensifica-se.
Acendemos a lareira mais cedo do que é costume e tapamos as portas e as janelas com papel. Fecho a porta do escritório, onde está sempre uma diferença de alguns graus. As ondas chegam agora até a parede do terraço. Nas rochas em frente, eclodem a intervalos, geisers extranhos, como que nascidos da pedra. A salamandra de ferro fica incandescente, mas continua fresco. Pensamos no que teriamos feito na Elias Garcia 147. E penso em muitas coisas que aconteceram, que nunca mais acontecerão"
26 janeiro, tês dias depois: "É incrivel como pode mudar o tempo nesta costa do Atlântico. Depois da tempestade de ontem, continuada com fúria durante boa parte da noite, acorda-me uma manhã quente e solarenga. Um autêntico dia de Verão. Partimos para o Guincho..."
13 de Junho: Ha três dias, calor terrivel (40° a sombra). Tomo banhos sem parar, na praia em frente de casa. Os estores estao fechados nas janelas, de madrugada e até ao por do Sol. Canícula."
Mircea Eliade, Diario Português (1941-45), Guerra & Paz Ed. 2008.

Wednesday, March 21, 2012

Bill Evans

Fios melódicos ondulantes que se encontram em harmonias complexas fluem pelos dedos macios de Bill Evans como a água fresca de uma fonte cristalina na Primavera... "You must believe in Spring"... A pulsação ternária em "Waltz for Debby"...
Aqui, Bill Evans fala do processo criativo, depois de uma introdução de Steve Allen que faz jus ao seu nome, pois nos ajuda a compreender o processo criativo em que o cerebral Bill Evans se alonga nesta seminal entrevista.



E aqui temos Bill Evans ao vivo, com Chuck Israels e Larry Bunker, numa gravação dos anos sessenta, tão excepcional como esta sessão marcada pelo intimismo e pela unidade do conjunto, em que transparece uma expontaneidade amadurecida que se saboreia como o melhor "vintage".



Como qualquer genuíno homem do jazz, Evans não era um intérprete. Ele recreava recreando-nos... quando não criava os temas que desdobrava com aparente naturalidade e inesgotável criatividade... como é o caso do tema "Waltz for Debby" que podemos saborear no final da sessão.

Wednesday, March 07, 2012

"Au terme d´une civilization"

Em "L´éloge de la main", Henri Focillon fala-nos assim de Paul Gauguin:
"Quand nous lisons la vie de celui que naguère j´appelai le bourgeois peruvien (1), nous voyons d´abord um financier hardi et habile, ponctuel et heureux, enveloppé para sa Danoise (2) dans les replis d´une existence douillete et contemplant les tableaux des autres avec plus d´agrément que d´inquietitude.
Insensiblement, et peut-être en vertu d´une de ces mutations qui jaillissent des profondeurs et qui crèvent la surface du temps, il prend en dégôut l´abstraction de l´argent et du chiffre; il ne lui suffit plus de dessiner, avec les seules ressources de son esprit, les méandres du risque, de spéculer sur les courbes de la Bourse, de jouer avec le vide des nombres.
Il lui faut peindre, car la peinture est, entre autres, um moyen de ressaisir cette antiquité eternelle, à la fois lointaine et pressante, qui l´habite et qui le fuit. Et non pas la peinture mais toute œuvre de mains, comme s´il avait hâte de prendre une revanche sur leur longue oisivité civilisée".


E mais adiante continua Focillon: "Cet homme aux sens subtils combat cette subtilité même pour restituer aux arts la qualité intense qu´íls ont noyée dans les tons fins, et, d´un même mouvement, sa main droite se défait de toute adresse, elle apprend de la main gauche cette innocence qui jamais ne devance la forme: moins rompue que l´autre, moins experte en virtuosités automatiques, elle chemine avec lenteur et respect le long du contour des êtres".
Porque, para Focillon: "La gauche, cette main que désigne injustement le mauvais côté de la vie, la portion sinistre de l´espace"...esta gaucherie "de la main gauche est assurément necessaire; elle nous relie au passé vénérable de l´homme, alors qu´il n´était pas trop habile".
...

D'où venons-nous ? Que sommes-nous ? Où allons-nous ...(3)
"Gaugin est à la fois au commencement du monde et au terme d´une civillization" (4).
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(1) De ascendência peruana pelo lado da mãe, Alina Maria Chazal, Paul Gauguin nasceu em Paris mas viveu no Perú desde os dezoito meses até aos sete anos. E não transparece a influência da cultura andina na arte de Gauguin?
(2) Paul Gauguin casou-se em 1873 com uma senhora dinamarquesa de nome Mette-Sophie Gad. Com ela foi para Copenhague onde se estabeleceu como comerciante de oleados, depois de ter sido um bem sucedido corrector da Bolsa de Paris.
(3) Assim é designada a enorme tela reproduzida na imagem imediatamente anterior que Gauguin recomenda que seja lida da direita para a esquerda. Na primeira imagem uma cena da vida quotidiana de Papeete, à sombra de pândanos, uma árvore parecida com uma palmeira mas da ordem das Pandanales comum na ilha de Tahiti. Esta tela "i raro te oviri", "sob o pandano", foi objecto de um artigo na revista "Emerging infectious diseases", interessante no ponto de vista desta reflexão.
(4) Retomo Focillon.

Tuesday, March 06, 2012

"A mão que pensa"

La main est action; elle prend, elle crée, et parfois on dirait qu´elle pense.
Henri Focillon, Éloge de la main


Em "A mão que pensa", Juhani Pallasmaa trata do papel central do nosso sistema sensorimotor na concepção (e na experiência) da arquitectura.
Durante o processo do projecto o arquitecto habita o edifício que delineia. Como consequência da transferência mental entre a realidade do desenho ou da maquete e a realidade material do projecto, as imagens não são meras representações visuais, mas constituem uma "realidade imaginária" completamente "háptica" e multi-sensorial.
A conexão entre a mão, o olhar e a mente resulta natural e fluída no desenho, fazendo o lápis como que a ponte entre duas realidades, e o foco da atenção como que altenando entre o desenho e o objecto existente no espaço mental que o desenho descreve.
Juhani Pallasmaa, tal como Glen Murcutt, não duvida que se trata de uma intimidade que é dificil ou mesmo impossível de alcançar no desenho assistido por computador.
A maquete física é uma outra ajuda incomparável no processo do projecto. A maquete tridimensional fala à mão e ao corpo de um modo tão potente como ao olhar e o seu processo de construção simula o processo de construção real, tal como pode simular o comportamento das formas ao trânsito da luz ou do som e face ás acções dinâmicas ou da gravidade.
Sempre me causaram viva impressão as obras de Gaudi que se enraízam no sítio por vezes de forma bem literal. Elas parecem emergir de um pensamento telúrico aliado a uma empatia que teria levado Gaudi a estudar a suas estruturas "orgânicas" em maquetes físicas suspensas pela base, de pernas para o ar, feitas de arames articulados que se dispõem em tensão, seguindo o funicular das forças, sob o efeito da gravidade... No correcto pressuposto de que a estrutura revertida tomaria a mesma forma, mas trabalhando à compressão como convinha à alvenaria.
A figura(*) apresenta a maquete de arames "revertida" da Igreja de Santa Coloma de Cervello, percursora da Sagrada Família.
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(*) Imagem invertida da maquete exposta na "Casa Milá" (Casa da Pedrera, Barcelona). No segundo plano a imagem invertida da estrutura parabólica da galeria que hoje está dedicada à exposição da obra de Gaudi. Fotografia do autor destas linhas.

Saturday, March 03, 2012

A aldeia e a cidade

A aldeia e a cidade.
Na aldeia, no mundo rural como na pequena cidade provinciana, todos se conhecem. A comunidade impõe-se ao indivíduo, como os laços de sangue. A entreajuda coexiste com a coscuvilhice.
Essa pressão da comunidade não existe na cidade cosmopolita.
As relações humanas tendem a ser ocasionais ou institucionalizadas, funcionais , o mercado está aí "en su sitio" e, nestes termos o mercado casa-se com a liberdade, a liberdade individual.
O indivíduo escolhe as suas relações, não se sujeita ás que lhe impõe a comunidade como acontece na província.
Perdem-se as relações afectivas no torvelinho das circunstâncias, falece a entreajuda e com o individualismo nasce o isolamento, a solidão acentuada pelo envelhecimento da população, numa espécie de liquefação social.
Com as "novas tecnologias", com a internet, a cidade globaliza-se.
Não é a aldeia que se globaliza, mas a cidade cosmopolita.
A ideia da aldeia global não tem razão de ser!
Mas será possível prescindirmos de repente dessa milenar relação afectiva com os outros, com mundo a nossa volta, com a natureza?
Há quem não consiga trocá-la pela liberdade individual e fuja da cidade cosmopolita.
Há também quem procure de alguma forma acolhê-la na cidade.
A ideia de "unidade de vizinhança", numa cidade feita de "bairros" vai nesse sentido de salvaguardar a vida comunitária.
E há hoje a feliz possibilidade de a acolher nos subúrbios que, graças à difusão das "novas tecnologias", poderão deixar de estar condenados à sua aviltante condição de dormitórios. As "novas tecnlogias" podem favorecer o global, mas também o local! Trabalhar em casa ligado a todo o mundo pela net é uma possibilidade e uma preferência para muitos trabalhadores por conta própria e por conta de outrem, em empresas que já hoje aceitam essa situação. A permanência de pessoas durante todo o dia traz consigo comércio de proximidade, escolas e outros equipamentos sociais, animação urbana. Muitos dormitórios podem assim converter-se em "wired communities", constituindo atraentes "unidades de vizinhança". Mas, para isso, o trânsito rodoviário tem que ser "acalmado", transferindo para uma rede de praças, passeios ou ruas de peões a função estruturante do "espaço público".

Mas numa cidade feita bairros ou "unidades de vizinhança" perde-se a convivência urbana se não houver um centro vivo, congregador e identitário, em que todos os cidadãos se encontram em liberdade, nos bons e maus momentos da polis.
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Nota: O desenho é de Walter Schwagenscheidt (1886-1968). Schwagenscheidt trabalhou com Tassilo Sittmann no plano expansão de Frankfurt para Noroeste, em que procurou aplicar as suas ideias sobre a cidade. Defendeu a domesticação do automóvel e a conjugação da privacidade com a vida comunitária em atraentes livrinhos como o EIN MENSCH WANDERT DURCH DIE STADT ("Um homem passeia pela cidade"), recheados de imagens, sugestivos apontamentos e esquemas. Tenho a informação não confirmada que andou pelas aldeias do Alentejo.

Friday, March 02, 2012

Atentemos mais uma vez na Islândia!

A competição mercantil é uma guerra.
Uma guerra no domínio virtual da finança.
A Europa está debaixo do fogo do Bundesbank.
Mas a Europa está, cada vez mais, presa do tigre chinês que reivindica interessadamente os estatuto do "free market capitalism".

"China may be a small player in Europe..."
A China investe na Europa. Primeiro foram as dívidas soberanas, mas agora há outras aplicações menos arriscadas, mais apetitosas e oportunas: infraestruturas, portos, vinhos e carros de marca...
Os pragmáticos funcionários não eleitos da U.E. põem-se de cócoras vendendo à nossa alma ao diabo. "For many E.U. officials, there are simply more urgent issues than human rights..." (TIME, Dezembro 19 2011).
Mas há, mais uma vez, a Islândia que dá o exemplo a seguir, na rejeição do plano turístico de $200 milhões, do bilionário Huang Nubo, ex-funcionário de Partido Comunista Chinês: "Iceland officials reject the plan in November, suspecting that Nubo was eying other possibilities too, including Iceland´s hudge potential for energy companies as global warming makes the Artic more accessible" (TIME, Dezembro 19 2011). Lá se iria a boa vida própria que a comunidade islandesa tanto preza!
Presa e preza! Uns estão presa porque se vendem, outros não se vendem porque se prezam!
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Actualização:
09.07.12: "Iceland Turns Away from EU as Economy Recovers". Continuam a chegar boas noticias da Islândia que nos deu uma lição de democracia: não se intimidou com as ameaças e bateu o pé aos mandarins e sacerdotes da Banca e da (des)União Europeia! Os islandeses deixaram os bancos cair... de forma controlada, reservando os dinheiros públicos para manter os serviços sociais e a educação. E mantiveram a sua krona que desvalorizou facilitando as exportações. "Somos um país pequeno, realmente quero manter a krona islandesa, não o estúpido euro", a resposta de uma islandesa que deve traduzir o pensar de muitos islandeses. Um exemplo que deviamos seguir, o que é impossível enquanto estivermos amarrados a um euro disfuncional por um governo subserviente que mais parece uma comissão liquidatária, almofadado numa anomia generalizada e persistente!
29.12.12: O FMI, um dos membros da troika que está a dar cabo da nossa economia e do nosso estado social seguindo os interesses dos "mercados financeiros" por via do nosso indigente Governo, vem agora reconhecer que os Islandeses fizeram bem em mandar ás urtigas os interesses dos "mercados financeiros" defendendo a sua economia e o seu "estado social"! Dignos eles, bananas nós!