Reflexões Planetárias

Wednesday, November 27, 2013

Diálogo a propósito de bancos

...
-A propósito, estou a ler recensões sobre um livro de Michael Rowbotham - "The grip of death" - em que ele mostra como estamos todos amarrados aos bancos por via de uma economia assente no dinheiro-divida possíbilitado pelo rácio de reserva, no endividamento que estimula o consumo e amarra ao trabalho para pagar as dívidas. Impressionante! O livro já foi escrito há uns anos!
Alguns links:
http://prosperityuk.com/books-on-monetary-reform/grip-of-death-michael-rowbotham/
http://www.feasta.org/documents/feastareview/glynn.pdf
http://www.cfoss.com/grip.html

- Tem uma boa review!
- Mas lê as recensões. Valem o tempo perdido. Há precisões financeiras que não percebo, mas parece-me que percebo o essencial que leva a concluir que aqui é que está a besta que temos que vencer!
Estarei enganado? É que nunca ouvi ninguém dar importancia a "isto". Mesmo os meus amigos economistas!
- "Isto"? O dinheiro-divida possibilitado pelo rácio de reserva?
- Basicamente.
Sabes o que é o rácio de reserva?
- ?
- Supunhamos que ele é de 10%. Os bancos podem emprestar até 90% do total dos depósitos. Um baixo rácio favorece a criação de dinheiro-dívida pelos bancos, o que puxa pelo crescimento económico... e aumenta a vulnerabilidade dos bancos!
As pessoas consomem não para satisfazer necessidades mas para contrair dívidas e têm que trabalhar para pagar as dívidas contraidas. Desumano e insustentável!
- !?
- ...E repara que os bancos estão a fabricar dinheiro fantasma: dinheiro-dívida!
A Banca empresta ao João dinheiro que o João lhe fica a dever. O João vai entregá-lo à Maria em troca da casa que lhe compra. A Maria vai depositar o dinheiro que recebeu do João. A Banca recebe o dinheiro de volta como depósito (que poderá emprestar segundo o rácio de reserva) e fica com outro tanto que é a dívida do João! E assim sucessivamente!
Isto é um maná! Cá está o dinheiro-dívida.

Eis a besta financeira: a Banca e o seu mecanismo da dívida que enreda não só as famílias e as empresas, mas também os estados numa dividocracia galopante:

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Sunday, November 24, 2013

Whoops!

Whoops!
Quem errou? A Banca!
John Lanchester explica como é que a ciência foi capturada e abusada pelo mundo da finança, levando-nos à situação actual em que "todos devemos a todos e ninguém pode pagar", como diz Lanchester no subtitulo do seu livro.

O vilão desta história deprimente é a Banca. Os seus coniventes são os governantes do Estado democrático e os cientistas capturados por ela. Os sacrificados são os mais inocentes, sobretudo e mais uma vez a classe média.

Lanchester desmonta com suficiente detalhe a aplicação fraudulenta de instrumentos matemáticos na especulação financeira pela Banca que, embalada numa ganância desenfreada em obediência à lógica do maior ganho financeiro, abandonou a sua função primeira de apoio à economia.
Foi salva da bancarrota pelo dinheiro dos contribuintes - leia-se "classe média" - carreado pelo Estado democrático, capturado pela Banca, por via dos seus poderosos lobbies ou grupos de pressão, pela corrupção e pelo negócio de influências.
O Estado deveria então ter reposto os travões tradicionais a uma Banca desenfreada.
Continuando capturado, não o fez!
Estando agora de rastos, o Estado e a classe média, não poderemos salvar outra vez os bancos da bancarrota que se antevê portanto devastadora.
Cairemos desta vez, não numa recessão, mas numa depressão, porventura tão profunda como a que assolou a Europa na grande crise do capitalismo do século passado. Começa a haver sinais disso mesmo!
Se não é isso que queremos, temos que encontrar forma de sair do buraco em que nos encontramos, rumo a uma alternativa genuinamente democrática e ecologicamente sustentável, em que os "mercados" sejam colocados ao serviço da sociedade. Também há sinais de que isso começa a acontecer!

Wednesday, November 20, 2013

Rem Koolhaas a aquitectura e a sociedade

Agarre nos últimos cinquenta anos de arquitectura moderna e meta os "objectos" numa centrifugadora espalhando-os no horizonte de uma cidade. Confecionará qualquer coisa parecida com Roterdão que teve a infelicidade de ter sido bombardeada por duas "coisas": bombas e arquitectos.
É mais ou menos assim que Oliver Wainwright começa o artigo positivamente "bombastico" que publicou no Guardian sobre o "De Rotterdam" de Rem Koolhaas e a arquitectura.
Koolhaas, o autor da "Casa da Música" que caiu no Porto.
"The most important thing about this project is your perception of his size and mass as you drive over de bridge" gritava Koolhaas a Wainwright no seu ruidoso BMW desportivo, a caminho do seu "longest running project" finalmente realizado.
"But is it anything more than an optical trick, a game of dancing facades best viewed from a distance?" pergunta Wainwright.
"That´s all you need to see. The rest is just cheap office building" responde Koolhaas que não o acompanha na visita ao interior do "objecto".

A constelação a que pertence Rem Koolhaas, brilha no céu da sociedade de mercado, tal como as cintilações de outras estrelas - Piano, Foster, Siza, Mecanoo, LEDs - salpicam a cidade de Roterdão.
A sua fixação no espectáculo do embrulho - as "dancing facades best viewed from a distance" - menospreza o conteúdo, o conteúdo humano. Tal como o valor de troca prevalece sobre o valor de uso na economia de mercado do capitalismo global.
"Form follows finance"!
Mas, em paralelo com este capitalismo global, estão a desenvolver-se comunidades "baseadas na literacia ecológica e na prática do ecodesign" (F. Capra, 2002) na busca de uma alternativa sustentável, em que o valor de uso prevalece sobre o valor de troca.
Enquanto que "a economia global visa maximizar a riqueza e o poder das suas elites, o ecodesign visa maximizar a sustentabilidade da teia da vida", num grande leque de iniciativas que vai de sofisticadas intervenções pontuais como é o caso do Neue Monte Rosa-Hütte, até ás propostas de reorganização das cidades e à Permacultura.



Dois modelos de vida que, no entender do Fritjof Capra, estão numa rota de colisão em que a questão central não é de natureza tecnológica mas política. "O grande desafio do século xxi será o de mudar o sistema de valores subjacente à economia global, tornando-o compatível com as exigências da dignidade humana e da sustentabilidade ecológica".
Para Capra este processo está em curso. Bom! Temos que fazer por isso!
"Em Portugal a arquitectura acabou nos próximos dez anos". Palavras como balas que Souto Moura desferiu vai para um ano. Tempo para nós que vamos ficando, repensarmos a arquitectura. E, nesse repensar, não seria boa ideia deixarmos de olhar tanto para as estrelas e regressar à terra usando mais os conhecimentos do que os equipamentos?

Wednesday, November 13, 2013

Tratado de Comércio e Investimento UE-EUA

Na semana passada realizou-se uma conferência pública subordinada ao tema "O Tratado de Comércio e Investimento UE-EUA: Perspetiva Luso-Americana". organizada por Vital Moreira, deputado europeu pelo PS, presidente da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu e relator para este tratado.
A conferência que ocorreu nas vésperas da segunda ronda das negociações, "permitiu debater o impacto e as oportunidades que o Tratado de Comércio e Investimento entre a União Europeia e os EUA pode trazer à economia portuguesa, e sinalizar interesses “defensivos” e “ofensivos”, tanto da UE em geral como de Portugal em especial."
O acordo que começou oficialmente a ser negociado em Junho, em Washington, é "o mais complexo e o mais ambicioso de sempre" porque está lá tudo incluído: "bens, serviços, investimentos, harmonização regulatória, compras públicas", mas isso não quer dizer que demore mais tempo do que os outros acordos que a União Europeia já negociou ou está ainda a negociar." Muito confiante, Vital Moreira admite que "podemos estar a menos de dois anos desse grande evento, um `game-changer`, um acordo que muda as coisas".
Este acordo transatlântico abrirá portas para o "enorme mercado americano" considera Vital Moreira, sublinhando que ele irá ajudar os países mediterrâneos e, em particular as empresas portuguesas a entrar "no enorme mercado americano".

Mas nem tudo serão rosas! Vital Moreira apontou para alguns espinhos, na entrevista noticiada no Agroportal. Salientou dois, a título de exemplo.
Haverá mais e, entre estes, um que merece especial atenção pois poderá ser o mais importante de todos se o mecanismo conhecido por "investor-state dispute setlement" (I-SDS) vier a ser incluido no acordo. Se isso vier a acontecer, alerta George Monbiot, este acordo será um "frontal assalto à democracia" pois que garantirá ás ETN a capacidade de processar os governos que pretendam defender os seus cidadãos. A inclusão de um I-SDS permitirá que um "painel" à porta fechada de corporate lawyers ultrapasse a vontade do parlamento e destrua protecções legais existentes. Não obstante, lamenta Monbiot, "os defensores da soberania não dizem nada".
O I-SDS já é hoje utilizado em muitas partes do mundo para liquidar regulamentos que protegem as pessoas e o planeta. Monbiot apresenta muito exemplos em que este mecanismo permitiu ás ETN travar regulamentos e arrecadar centenas e centenas de milhares de dólares em processos instaurados aos governos do Canadá, Austrália, Argentina e El Salvador.
Grandes empresas que, em termos financeiros, se medem com estados como o português, estão a usar regras do I-SDS incluídas nos tratados comerciais, para processar os estados que os assinaram. As regras são aplicadas por "paineis" de juristas que não têm as salvaguardas dos nossos tribunais. As audiências são feitas à porta fechada. Os juízes vêm de grandes escritórios de advogados ligados ao mundo dessas empresas. Cidadãos e comunidades afectados pelas suas decisões não têm nenhum estatuto legal. Não há lugar para recursos e as arbitragens podem sobrepor-se à soberania do parlamentos e à regulação dos supremos tribunais.
Incrível! Eis o que diz um dos juizes destes "paineis", citado por Monbiot: "Quando acordo de noite a pensar sobre a arbitragem, espanta-me que estados soberanos tenham alinhado sem reservas nesta arbitragem do investimento... Três indivíduos do foro privado são investidos do poder de rever, sem nenhuma restrição ou possibilidade de recurso, todas as acções do governo, todas as decisões dos tribunais e todas as leis e regulamentos que emanam do parlamento.
"Não há direitos correspondentes para os cidadãos. Não se pode usar estes tribunais para exigir melhores protecções contra a ganância das ETN", Sublinha Monbiot citando o Democracy Center: "um sistema de justiça privatizado ao serviço das ETN."
"Este é o sistema a que ficaremos sujeitos se o tratado transatlântico for por diante" teme Monbiot. "Os Estados Unidos e a Comissão Europeia, ambos capturados pelas ETN que supostamente deveriam controlar, estão a fazer pressão para que a resolução sobre o "investor-state dispute" seja incluída no acordo... A CE (Comissão Europeia) pretende substituir tribunais soberanos, abertos e responsáveis por um sistema fechado e corrupto eivado de conflitos de interesse e poderes arbitrários."
Confiante na concretização de um acordo histórico, Vital Moreira admite que "podemos estar a menos de dois anos desse grande evento, um `game-changer, um acordo que muda as coisas".
Sim. Poderá ser um grande passo na reconfiguração tecnocrática da sociedade moderna. Não é para aí que aponta o menosprezo dos governos pela vida das pessoas e a sua fixação no comécio externo, bem como a fixação dos sacerdotes econometristas nas abstrações macroeconómicas da economia política?
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Actualização/Outubro 2014: Publicado por Wikileaks um Press Release rompendo o secretismo das negociações em curso aqui
Actualização/Novembro 2014: Está a correr aqui uma petição dirigida à Comissão Europeia para reconsiderar a assinatura deste tratado; Portugal recua no apoio à polémica cláusula de "protecção do investimento" que visa incluir no tratado os "tibunais arbitrais"?

Thursday, November 07, 2013

Gerir um país é como gerir uma casa?

“Imaginem o que é uma família ter que passar um ano inteiro a trabalhar sem comer, sem utilizar eletricidade, sem utilizar transportes, só para pagar a dívida dessa família. Foi este o ponto a que chegámos em Portugal. É um ponto absolutamente insustentável”, afirmou Crato, em Ovar, durante uma sessão de esclarecimento sobre o próximo orçamento.



Se nas famílias portuguesas imperasse a norma austeritária de "expiar" num ano o pagamento da casa ou do carro, o sr. Prof. Nuno Crato não teria nascido porque já estariamos todos mortos há muito tempo... inclusivé os mais ricos que não tivessem fugido entretanto para os seus paraísos fiscais, pois não teriam por cá ninguém a trabalhar para eles e a pagar as dívidas resultantes das suas práticas especulativas que nos levaram ao "estado" em que estamos.
Quererá Nuno Crato, com o curto prazo da amortização, fazer sentir ao comum dos mortais a desmesura do endividamento do Estado, comprando-o com o das famílias? Não parece boa ideia, pois que o endividamento em cerca de 120% do PIB que a troika considera razoável para o Estado nos próximos anos, é bastante inferior ao limite critico de 300% encarado pela banca para o endividamento das famílias, como observa Ricardo Sequeiros Coelho, baseado nos resultados de um inquérito publicado em 2012 pelo Banco de Portugal (1).

Mas será sequer admissível assemelhar a gestão das contas de um país à gestão das contas de uma casa de família?
Sequeiros Coelho diz-nos que tal comparação não consta dos manuais de economia, mesmo dos mais ortodoxos.
A investigação histórico-antropológica feita por Karl Polanyi, comprova a diferença entre "householding" familiar e "reciprocidade" e "redistribuição" que regeram a economia das sociedades civilizadas mais complexas... até à sociedade moderna em que é o mercado que manda na sociedade.
Não se pode comparar realidades completamente diferentes.
Não se pode comparar uma pequena comunidade famíliar com uma sociedade maior e mais complexa, mas "esse é um dos argumentos mais comuns do discurso austeritário" que assenta "no paralelismo entre a gestão do orçamento de Estado e do orçamento doméstico", como salienta Sequeiros Coelho.

Porque se insiste então nesta analogia dentro do discurso austeritário dominante?
Michel Lowry, entrevistado por Gabriel Fabri, na revista Forum a propósito do trabalho de Walter Benjamin, perfilha uma explicação muito plausível nos seguintes termos:
"Muito do que o Benjamin diz corresponde de maneira surpreendente ao funcionamento atual do capitalismo. Realmente há algo de um culto religioso na maneira como os representantes do sistema capitalista, seus economistas e os seus meios de comunicação se referem à propriedade privada, ao mercado, à bolsa… Mas talvez a coisa mais surpreendente e atual é quando Benjamin fala da ambivalência, na língua alemã, do conceito de Schuld, que é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Ele acha que essa coincidência é diabólica e que isso está no coração da religião capitalista: a dívida é uma culpa, quem está endividado é culpado. O capitalista está sempre em dívida com o seu capital, o pobre está sempre em dívida porque não tem dinheiro, então todos somos endividados, todos somos culpados. Hoje em dia nós vemos na Europa um discurso teológico de que todos os países que estão em crise estão por culpa deles, porque não trabalham, são preguiçosos, esbanjaram dinheiro. Todo um discurso moralista querendo culpabilizar esses países, quando sabemos que a dívida resulta da lógica do próprio sistema capitalista, de sua irracionalidade profunda."

À medida que se foi passando do meio académico para dentro do mundo dos negócios e da política - e Nuno Crato está hoje bem dentro, na linha da frente do actual governo - cresceu nele uma arrogância assaz ignara que transparece nas afirmações bombásticas como esta da analogia em apreço, bem como nas medidas simplistas da entrega do cheque-ensino aos alunos em nome da liberdade de escolher e da entrega da missão do "exército da educação" à iniciativa privada de grupos de soldados-professores(2) ao serviço da mercantilização da sociedade.
Ao que chegámos! Isto é anarco-capitalismo no seu pior!
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(1) Contribuição de Sequeiros Coelho para o trabalho "Não acredite em tudo o que pensa", coordenado por José Soeiro, Miguel Cardina e Nuno Serra, publicado pela editora "Tinta da China" em 2013
(2) Expressiva metáfora usada por um participante da assistência, no "Prós-e-contras" do passado dia 4 de Novembro.

Saturday, November 02, 2013

A propósito do Orçamento de Estado para 2014

Com a sua habitual assertividade, Ricardo Pais Mamede caracterizou assim em três penadas o Orçamento de Estado para 2014 (1):
- Contraproducente
- Aldrabão
- Cobarde
Contraproducente, pois que, repetindo a receita austeritária aplicada nos anos anteriores, não alcançará (mais uma vez) as metas da redução do deficit, da dívida e o crescimento económico, não criando as condições para o pretendido "regresso aos mercados".
Aldrabão, pois que assenta em projecções reconhecidamente irrealistas e desencontradas. Por exemplo, medidas recessivas não são compatíveis com crescimento económico. Duplamente aldrabão, digo eu, pois cobre com a bandeira da sustentabilidade, a desregulamentação e a privatização dos serviços públicos, tendo na mira a destruição do estado social: os três pontos da designada "agenda neoliberal".
Cobarde, pois que, com o apoio abusivo de instituições mercantis internacionais, pressiona o Tribunal Constitucional responsabilizando-o pelo previsível falhanço da politica austeritária que o Orçamento prossegue, qual Titanic... do mesmo passo que abre assim caminho para a revisão da constituição, indispensável para a concretização da tal "agenda neoliberal" seguida pelos titeres da União Europeia.
A resposta democrática a esta ofensiva do governo PSD-CDS subordinada à financeirização e à internacionalização da economia a mando dos "mercados", poderá passar pela realização de um referendo ao Euro, mas não poderá precindir de eleições com vista à formação de um novo governo respaldado por inequívoco mandato popular para renegociar a Dívida com os credores. A dureza e as previsíveis consequências desta negociação, em que não se poderá descartar a saída do euro no avisado entender de José Maria Castro Caldas, exigem um mandato popular que, para ser inequívoco tem que ser conferido por uma massa crítica de cidadãos perfeitamente conscientes da situação em que nos encontramos e dos riscos que corremos.
E esse é que pode ser o problema para quem vê na esmorecente sucessão das manifestações de rua, sejam orgânicas ou inorgânicas, no vaivem das "superfícies comerciais" que competem com o centro das cidades, na persistente fixação no futebol, nas telenovelas e "reality shows" em que se vai esbatendo a fronteira entre a realidade e a ficção, a progressão de uma espécie de anomia, entrecortada aqui e ali por um "sobressalto cívico" passageiro.
Estaremos nós hoje a afundar-nos numa anomia galopante?
Hoje, concentrado na leitura de uma pequena obra de Léon Walras publicada pela editora Inquérito, fui surpreendido pela curiosidade da empregada da pastelaria, acerca de um livro aparentemente tão antigo.
Respondi-lhe eu: Sabe que nesta altura, já lá vão setenta anos, havia quem lançasse belíssimas colecções de divulgação que percorriam a política e a história, a economia e a sociologia, a filosofia e a religião, o direito, a ciência e a literatura. Cadernos verdadeiramente populares. Este exemplar custava 3 escudos, menos de dois cêntimos na moeda de hoje. Para o tempo era mesmo acessível.
Ripostou imediatamente a jovem empregada: Pois, nessa altura, mas agora não, parece que não estão interessados nisso.
Respostas destas podem não manifestar uma deprimente anomia, mas sim uma apatia porventura expectante. Apatia, como reação racional a um sistema que já não representa, não ouve nem serve a grande maioria das pessoas. As pessoas só esperam mais do mesmo do "sistema". Os partidos do governo perdem nas sondagens, sem que essa perda seja capitalizada pelos partidos da oposição que não apresentam uma "alternativa genuína" capaz de as mobilizar. É para esta "alternativa genuína" que apela o comediante Russell Brand, recentemente entrevistado por Jeremy Paxman na BBC, Reino Unido. Lá como cá!
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(!) No Encontro realizado pelo CDA (Congresso as Alternativas) na quinta-feira passada, para debater o Orçamento de Estado para 2014.