Reflexões Planetárias

Friday, June 29, 2012

A crise europeia segundo Mike Davis

Mike Davis é um observador da vida das cidades na linha de Lewis Mumford embora sem a sua enciclopédica erudição, mas dotado de um espirito crítico que se expressa numa escrita acutilante e criativa.
O seu "City of Quartz" é um quadro vigoroso das tensões que se desenvolviam em Los Angeles e que explodiram nos motins de 1992.
"Planet of Slums" percorre o submundo planetário dos "bairros de lata", denunciando os mecanismos de exclusão que os originaram e entre estes, sobretudo, as políticas de ajustamento estrutural do FMI/BM, depois do Consenso de Washington ao serviço dos grandes interesses economico-financeiros...
Numa entrevista recentemente publicada no jornal O Estado de S. Paulo sobre a Conferência Rio+20, Mike Davis expõe o seu ponto de vista além Atlântico, num entretecido de ideias discutíveis mas importantes sobre a crise europeia, enquadrada na crise global do capitalismo:
"A crise europeia transformou-se numa autópsia pública da globalização na sua forma mais radical. Ela mostrou a dificuldade de se superar desequilíbrios estruturais entre grandes economias - mesmo com as mais ousadas tentativas de regulação supranacional da crise(*). Doutores do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE) alertaram que a prosperidade europeia só pode ser salva por uma integração fiscal e política drástica, pela criação de um genuíno "Estados Unidos da Europa". Mas isso é inviabilizado pela atual vantagem económica comparativa alemã em produtividade e custos do trabalho. De um lado, os contribuintes alemães não aceitam sustentar o bem-estar social de gregos e espanhóis. De outro, seria uma humilhação e rendição das soberanias nacionais em troca de benefícios hipotéticos após longos ajustes de austeridade. Os chamados fundos de resgate oferecidos são basicamente um programa para evitar prejuízos aos bancos do norte. Na Grécia, por exemplo, os empréstimos do BCE foram basicamente usados para transferir o risco de bancos estrangeiros para a Grécia e contribuintes europeus. Na Irlanda e na Espanha, transformaram perdas bancárias em dívida pública. Uma vez que os grandes bancos têm sempre prioridade nos botes salva-vidas, enquanto mulheres e crianças ficam para o fim, austeridade e dívida vão continuar numa espiral fora de controle. Essa política está condenando os EUA e a Europa a uma estagnação que já faz lembrar a "década perdida" da América Latina nos anos 1980. Poderão a China e os outros Brics continuar a crescer no meio dessa depressão? Pergunte aos bancos chineses...".
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(*) Não se pode esperar que esta crise da sociedade de mercado seja resolvida por quem está do lado do problema e não do lado da solução: os bancos que a provocaram, desviando dinheiro da economia para uma monstruosa especulação financeira, graças à porta aberta em 1999 pelo Gramm-Leach Act (assinado pelo presidente democrata Clinton) que removeu a fronteira entre os bancos de investimento e os comerciais americanos estabelecida no Glass-Steagall Act de 1933, permitindo aos bancos comerciais negociar com produtos derivados e seguros e actuar como brokers... o que aliás já vinha acontecendo desde os anos oitenta.
Confrontados com as consequências que fizeram os bancos? Remeteram os custos da sua actuação irresponsável para os contribuintes e voltaram à sua engenharia financeira. O dinheiro das injecções financeiras que entretanto receberam ou foi arrecadado ou foi para a especulação de curto prazo nos mercados financeiros, para realizar ganhos imediatos, em vez ir para a economia.
As praticas fraudulentas destes banksters continuam em grande escala como na recente manipulação da taxa de referência Libor. Londres tornou-se no "cowboy do capital financeiro" da economia global, no dizer de Jacques Rasmus.
Tudo isto destroi a economia e desacredita a grande banca aos olhos de todos nós, minando algo que é basilar nas relações humanas e designadamente no sistema financeiro: a confiança... o que não é surpreendente numa sociedade mandada pelo mercado livre... livre do freio moral.
Estamos então a assistir à autodestruíção do capitalismo como pensa Slavoj Zizek? Longe disso, responde Noam Chomsky que, quanto à Europa, admite mesmo que a resolução da crise financeira está a ser deliberadamente retardada tendo em vista minar o contrato social europeu. Para Chomsky, "isto é basicamente um caso de guerra de classes" que os plutocratas estão longe de perder.

Floresta de enganos

Olhar só as grandes árvores impede-nos de ver a floresta.
A "lógica do maior ganho financeiro" tem ganhadores e eles tem nomes, mas não se deve reduzi-la a conspirações e planos em que um clube de "ricos" concerta estratégias de poder cujos efeitos o resto do mundo sofre candidamente.
Não! O resto do mundo também embarca nesta lógica do ganho.
Veja-se a aplicação dos Fundos de Pensões nos CDS. Ela envolve os pensionistas na especulação financeira. É certo que por obra de gestores financeiros sem dar cavaco a ninguém.
Mas não deixa de envolver muita gente que, uma vez envolvida, cede à conivência, com medo de perder a reforma.
E depois, não há muito boa gente, até de esquerda, que jogou (e joga) na bolsa, em produtos financeiros, sem cuidar de onde vêm os juros que.... quanto maiores melhor?
Quantos de nós ao menos ouviram falar dos bancos éticos como o Triodos ou o Jak Bank ou das experiências com o dinheiro local, inspiradas no bem sucedido exemplo da cidade austriaca de Wörgl nos anos trinta?
E quantos de nós compram roupas "de marca" ou pechinchas nos "chineses", sem querer saber dos atorpelos sociais e ambientais que se escondem por detrás dos preços?
Não estão os maus de um lado e os bons do outro. A fronteira da moral passa por dentro de todos nós...
O que não nos pode levar a julgar todos por igual - ele há uns que são mais iguais do que outros, num mundo cada vez mais desigual em que "os mais ricos desistiram de qualquer pretensão de uma existência compartilhada com o resto de nós"(*).
E, por outro lado, nos leva a combater um sistema que corrompe por natureza, não só os mandarins e sacerdotes do mercado mas todos os que embarcaram na grande inversao em que se pretende que o mercado mande na sociedade e na natureza.
É um combate com século e meio e a grande reversão está para peras!
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(*) relembro a propósito o que disse aqui: "Os senhores que agora estão a munir-se de proventos anuais de seiscentos mil euros, poderão pensá-los como uma folga, uma "almofada" capaz de proteger o seu bem-estar contra o brutal aumento do custo de vida durante o resto da sua vida... mas acentuar-se-à brutalmente o fosso entre os super-ricos... e os "outros", os pobres, a populaça.
A conflitualidade social aumentará e com ela as medidas de segurança. Não da segurança social mas da outra, a policial, em cidades sitiadas."
E aqui: "É compreensível que a comoditização do trabalho humano, na lógica capitalista acoplada à eficiência tecnológica, conduza à imparável redução dos custos do trabalho e, finalmente, ao desemprego tecnológico. No fim da história teremos uma sociedade maquinista, constituida por uma classe possidente de ricos e por "robots". Um cenário recorrente na ficção científica".


Brincadeiras perigosas

...if the [the environmental] catastrophe isn’t…averted – [then] in a generation or two, everything else we’re talking about won’t matter.
Noam Chomsky, cit. Paul Street
O sistema de mercado está de novo em crise no mundo ocidental, não conseguindo cumprir a sua conditio sine qua non: crescimento económico!
Isto apesar de dispormos hoje, graças ao progresso das ciências e das artes, de uma capacidade de realização nunca antes alcançada.
Uma ordem de razões de natureza social, apontada por Polanyi para a primeira grande crise do capitalismo, reside na resistência da sociedade à sua subordinação ao império do mercado. Hoje, devemos acrescentar-lhe as deslocalizações que flagelam os trabalhadores da Europa e dos Estados Unidos e que agravam o desemprego tecnológico.
Mas há uma outra ordem de razões que Polanyi não descortinou e que hoje não é menos importante: a "resistência" da natureza. O abuso hubrístico do progresso tecnológico associado ao ansiado crescimento económico, põe em risco o ambiente relativamente estável que favoreceu a vida humana na terra, ao longo dos 10.000 anos da época holocénica em que (ainda) nos encontramos.
É evidente que os mandarins e sacerdotes do mercado não querem reconhecer esta contrariedade ecológica, ficando-se pelo "technical fix". Porquê? Porque faz cair pela base o seu sacrossanto crescimento económico. Mas também, porque as grandes alterações ecológicas não são imediatas... O que não impede que não possam ocorrer num futuro próximo, atingidos "limiares críticos": o conceito de planetary boundaries incluído no "draft negotiating text" da Conferência do Rio+20 está hoje em discussão no seio da comunidade científica.
"Todos nós temos obviamente outros assuntos muito mais importantes a atender." Foi com esta sobranceria que o Presidente Obama liquidou as negociações durante a reunião de Chefes de Estado, na "2009 Copenhagen Climate Conference".
Neste mundo cada vez mais desigual que cede à pressão dos mais ricos, a ordem de prioridades de Obama na conferência de Copenhaga em 2009 foi a que esteve patente na sua ausência e no discurso proferido por Hillary Clinton no nado-morto Rio+20 em 2012: o primado do mercado autoregulado, dos mercados financeiros, sobre a sociedade e a natureza.
Vinte anos depois da primeira conferência do Rio, continuamos a lavrar no mesmo "erro epistemológico".
Por isso, estamos na mesma... ou pior!
No dia em que a natureza se zangar a sério acabam-se as brincadeiras do capitalismo desenfreado... e lá vamos nós com elas! Acabemos pois com as brincadeiras!

Tuesday, June 12, 2012

De olhos postos na Grécia

Há cerca de um ano fazia-se aqui eco das preocupações de Stathis Kouvelakis, suscitadas pelas manifestações inorgânicas que ocorriam na Praça Syntagma.
Observava então com pertinência Stathis Kouvelakis: "Se a esquerda e as forças sociais organizadas não forem capazes de enfrentar este desafio, se elas se apresentarem fracas e fragmentadas, serão varridas pela dinâmica das relações sociais, pelo crescente desespero e, provavelmente, pela emergência no seio da sociedade, das tendências mais reacionárias e agressivas.
Se encontrarem formas de intervir e oferecerem uma perspectiva genuína que articule o descontentamento popular, então esta perigosa situação pode dar lugar a perspectivas de futuro para o país, para o movimento popular e, ainda, para as forças progressistas da Europa e do resto do mundo."

Os constrangimentos da política de austeridade vieram abalar a conivência tácita de uma maioria silenciosa com a cleptocracia a troco de benesses. Consequentemente, os desacreditados partidos do centro, manobrados por banqueiros e eurocratas, colocaram as "forças de esquerda" na posição dificílima mas histórica - meço bem as palavras - de lançar no tabuleiro da democracia representativa "uma perspectiva genuína que articule o descontentamento popular".

A situação da Grécia é crítica e as notícias que correm na comunicação social não deixarão de amedrontar o povo grego que irá a votos no próximo domingo.
Apanhado no enorme turbilhão da sociedade de mercado, com epicentro nos mercados financeiros e abrangendo a Europa e os Estados Unidos, o pequeno Syriza está no fio da navalha, pelo que é oportuno conhecer o Syriza, as suas principais intenções e o seu programa.
O Syriza, tal como o Partido Comunista (KKE), "acredita na mudança através de eleições". Mas nem toda a esquerda pensa que isso é possível: Será possível a Grande Reversão subordinando os mercados à sociedade, o poder económico ao poder político democrático no quadro estrito da actual democracia representativa?
Não é só o Syriza que está no fio da navalha, somos todos nós!

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19.06.12 Um primeiro comentário sobre os resultados eleitorais: As eleições revelaram que a maioria silenciosa corresponde a mais de 40% dos votantes que, em parte por medo, renovaram o pacto tácito com a cleptocracia dos partidos do centro manipulados pelos "mercados" e eurocratas. Se entrarmos com as abstenções, são cerca de 25% dos eleitores inscritos, o que é muito, mas também mostra como é falsa esta democracia representativa, para mais na Grécia em que o partido mais votado tem direito a um substancial bónus de deputados!
20.06.12 Adimtamos que os partidos que (des)governam a Grécia há quase 40 anos formam um governo de coligação. Os 25% de apoiantes serão suficientes para impedir a deterioração do clima social na Grécia face ao agravamento da política de austeridade, mesmo com alguns retoques dos "eurocratas"? A humilhação a par do empobrecimento em perpectiva são desesperantes!

Thursday, June 07, 2012

O "Ambiente" e o "Mercado"

In devastation there is opportunity
Carlton Brown, commodities trader
"Os dados que recebemos não incluem nada sobre condições ambientais. Porque. até elas se tornarem numa mercadoria - uma commodity - ou serem negociadas, não têm nada a ver conosco. Não existem na nossa mente."
Esta paradigmática maneira de ver de um commodities trader, exposta sem rodeios por Carlton Brown aqui a páginas tantas (0:36:26), mostra como as preocupações ambientais não constavam dos mecanismos financeiros da economia de mercado.
Depois de vinte anos de esforços empreendidos pela sociedade civil desde a 1ª Conferência do Rio!
Mas será que a contabilização das externalidades poderá contribuir decisivamente para "salvar o planeta" na linha de uma "economia verde"?


O descaminho que está a levar o negócio das emissões parece confirmar o receios dos que não concebem que isso se consiga entregando o capuchinho vermelho aos ardis do lobo mau, isto é, subordinando aos ditames da economia de mercado as nossas relações com a "natureza" e não só a sociedade.

Vem ao caso perguntar: Que poderemos esperar da "Cimeira da Terra Rio+20" senão mais do mesmo?
É que, citando Joan Martinez-Alier and Joachim Spangenberg: "Unsustainable development is not a market failure to be fixed but a market system failure: expecting results from the market that it cannot deliver, like long-term thinking, environmental consciousness and social responsibility."
O desenvolvimento insustentável não é uma falha do mercado mas a falha dum sistema de mercado autoregulado que desrespeita a "sociedade" e o "ambiente". Existem outros sistemas! Sistemas que não se acorrentam a abstrações macroeconómicas e quantitativas. Nessoutro sentido estão hoje a ganhar popularidade no mercado ético, os bancos éticos, uma alternativa aos fraudulentos bancos convencionais que oferece ao cidadão comum a possibildade de entregar as suas economias, sabendo de antemão onde serão responsávelmente aplicadas. Iniciativas desta natureza - que conheço na vizinha Espanha mas não em Portugal - contribuem para realinharmos o mercado rumo ao desenvolvimento sustentável.

Tuesday, June 05, 2012

Isto é uma vigarice pegada!

A lógica do capitalismo é a "do maior ganho financeiro pela inovação" segundo François Perroux. Eu diria, pelo artifício. Esta lógica do ganho pode convertê-lo num "racket legal organizado pela classe dominante" como o definiu Al Capone. Se não for controlado por um estado democrático forte, pode transformar-se numa vigarice pegada. E tenho para mim que a vigarice mais pegada é aquela em que vigaristas espertos vigarizam vigaristas estúpidos.

O conto do vigário contado por Fernando Pessoa(1)
Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa. Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.» «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos negociantes de gado como ele a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem. Houve então a troca de outro olhar.
O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as coisas todas certas. E ditou o recibo – um recibo de bêbedo, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar" (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbedo...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.
Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário «nem eu estava tão bêbedo que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça foi mandado em paz.
O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem.
Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade – nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.

As contas dos vigários... que nos põem a vida à razão de juros(2)
Como é que os mercados estabelecem os retornos das obrigações?
Um país emite obrigações a um preço de 1000 euros cada, a uma taxa de juros fixa de 5%. Portanto um investidor receberá um juro de 50 euros anualmente por cada obrigação que possuir.
Como é que a taxa aumenta?
Se surgirem dúvidas quanto ao pagamento da dívida por um país, o investidor tenta vender a obrigação – o que faz baixar o preço, por exemplo, para 900 euros. Quem comprar por 900 euros continua a receber os 50 euros de juros anuais, que em relação ao baixo preço de compra já lhe dá um juro anual de 5,6%.
Ainda por cima o novo comprador receberá ao fim dos 10 anos de maturação da obrigação os 1000 euros originais, de modo que se quando comprar a obrigação por 900 euros só faltarem, por exemplo, 3 anos para receber os 1000 euros, para ele os juros que  obtém passam a ser de 9 %.
Porque o investidor inicial resolveu vender, o país emissor da obrigação vai ter de pagar mais …Porquê?
Porque se o país precisar de se endividar mais, emitindo obrigações, tem de prometer pagar uma taxa de juros de pelo menos 9%, caso contrário os investidores limitam-se a comprar as obrigações em circulação que já lhes garantem os 9%.

Onde vamos! Como estamos longe do tempo em que o capitalismo nascente lutava pela liberdade da iniciativa privada contra as restrições municipais, do tempo em que uma proposta de Henrique II de França para o estabelecimento de um "banco tipo italiano", foi remetida pelos comerciantes da cidade de Paris para os teólogos (!), pois que o juro proposto, de 8%, lhes parecia não menos do que usurário, contrário ás leis de Deus, moralmente subversivo. Esta estória contada por Lewis Mumford dá-nos a medida da mutação de valores que se operou com o avanço de capitalismo nos últimos quinhentos anos. Hoje é a sociedade civil que se tem que libertar da ditadura financeira dos mercados.

O vigarista-mor que nos entrou em casa
Goldman Sachs, GS! Ao ler Marc Roche, fica-se com a ideia de que a GS é uma supermáquina. Uma sofisticada engenharia financeira serve, com a maior eficiência, um fim pré-determinado: no seu caso, ganhar dinheiro...
E, como todas as máquinas, não se rege por leis morais que só serviriam para atrapalhar! Não tem qualquer escrúpulo em aconselhar simultaneamente quem compra e quem vende um produto financeiro que "comercializa". Contratou recentemente um analista que instalou num remoto cubículo de 1.2x1.2m2, para dar pareceres pautados por princípios morais... que são referência para o que não se deverá fazer. Selecciona com rigor os melhores que são bem pagos e também liminarmente despedidos se necessário e conveniente. Tem vindo a colocar as suas peças em pontos-chave da economia e da política europeias (Mario Drahgi, Mario Monti, Lucas Papademos... e António Borges, veja-se o quilate deste clone).
O poder de instituições financeiras como estas é hoje enorme, mas elas estão hoje mais expostas e por isso mais vulneráveis.
Cabe aos governos democráticos, pressionados pelos cidadãos causticados pelas medidas de salvação do sistema bancário, metê-los na ordem.
Não serão concerteza governos como o do jota Passos Coelho e esta governança da (des)União Europeia, como estamos a (não querer) ver!
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(1)Texto recebido por mail com a seguinte nota: Publicado pela primeira vez no diário Sol, Lisboa, ano I, nº 1, de 30/10/1926, com o título de «Um Grande Português», foi publicado depois no Notícias Ilustrado, 2ª série, Lisboa, 18/08/1929, com o título de «A Origem do Conto do Vigário».
(2) Súmula de um powerpoint anónimo recebido por mail.